Inovação e tecnologia: no futuro poderemos comer vacinas?

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Um panorama atual sobre as vacinas

Há décadas as vacinas são utilizadas e desenvolvidas como ferramenta fundamental para a promoção da saúde individual e coletiva.

Com a pandemia gerada pela propagação do vírus SARS-CoV-2, os holofotes se voltaram com entusiasmo para o desenvolvimento de vacinas, gerando muita expectativa e interesse por grande parte da população.

Pouco mais de dois séculos após o desenvolvimento da primeira vacina, a tecnologia evoluiu muito. No Brasil, graças ao Plano Nacional de Imunização (criado em 1973), temos uma cultura vacinal importante, de forma que atualmente, praticamente todos os brasileiros em algum momento de suas vidas entraram em contato com algum tipo de vacina.

E, de maneira geral, se perguntarmos para a população a primeira coisa que vem à cabeça quando falamos em “tomar vacina”, provavelmente muitas respostas seriam relacionadas ao temido objeto que permite a via de administração mais comum: a agulha, utilizada na administração parenteral do imunizante (incluindo as vias subdérmica, subcutânea e intramuscular).

Apesar de a vacina de poliomielite ser administrada oralmente (alô, Zé Gotinha!), essa acaba não sendo a principal lembrança dos brasileiros. O medo da agulha é sempre uma questão, especialmente para as crianças.

E pensando sobre isso, deixamos uma pergunta: o quão fácil (e legal!) seria se você pudesse simplesmente comer a vacina ao invés de tomar uma injeção?

 

Mucosa: interface entre dois mundos

O desenvolvimento de vacinas que dispensem o uso de agulhas e seringas é uma das estratégias propostas pelo mundo médico-científico, a fim de solucionar alguns problemas, principalmente aqueles relacionados à logística necessária para o armazenamento e transporte dos imunizantes, assim como a redução dos resíduos hospitalares gerados.

Importante nos atentarmos que, em geral, as vacinas disparam mecanismos de resposta imune no organismo como um todo, porém nessa situação, a resposta imunológica específica da mucosa é bem mais branda (ou até mesmo inexistente).

Considerando que muitas infecções têm como porta de entrada a mucosa, ativar a resposta imune especificamente nessa região tem sido foco de muitos estudos, uma vez que poderia agir como um adjuvante das vacinas tradicionais, fornecendo mais uma barreira de proteção ao impedir a entrada do patógeno no organismo.

De maneira simplificada, as vacinas mais comuns são sintetizadas a partir da utilização do agente infeccioso atenuado ou inativo, ou mesmo a partir de uma subunidade ou proteína purificada do antígeno. No entanto, as vacinas de mucosa não podem seguir esse padrão.

Aqui é importante frisar que as mucosas aerodigestivas fazem a interface entre o nosso organismo e o mundo exterior, estando, portanto, mais exposta às ameaças do meio ambiente.

Como estratégia de sobrevivência, os organismos que apresentaram ambientes de mucosa mais hostis, com a presença de enzimas (como pepsina), movimentos peristálticos, ácido gástrico, pressão de expulsão pelo espirro, mucina entre outros, foram menos infectados e garantiram a passagem de seus genes adiante.

Além disso, exatamente por essa exposição constante ao meio ambiente, outro mecanismo se desenvolveu ao longo da evolução: a tolerabilidade do sistema imunológico comum às mucosas. Imagine a frequência e quantidade de agentes e substâncias que entram em contato com a mucosa e que poderiam induzir uma resposta imune. Na prática, seria inviável responder a todos esses estímulos sem danificar o organismo!

Sendo assim, ao longo da evolução, não é a presença de qualquer ameaça que dispara a resposta imunológica das mucosas. É preciso um estímulo mais potente.

Por esses motivos, a vacina de mucosa tem que ser formulada de maneira diferente. Fazendo com que o antígeno seja protegido do ambiente hostil e que seja eficientemente entregue à região de interesse para a indução da resposta imune.

Mesmo com esses obstáculos, alguns grupos têm tentado chegar no desenvolvimento de uma vacina de mucosa capaz de gerar resposta imune eficaz nos tratos respiratórios e gastrointestinais. Para atingir esse objetivo, integram conhecimentos de três áreas importantes: sistema imune da mucosa, ciência agrícola e bioengenharia.

Um dos projetos que mais tem se destacado é o que está desenvolvendo a MucoRice-CTB.

 

A VACINA DE ARROZ

A MucoRice-CTB é uma vacina oral baseada em arroz. Isso mesmo, o arroz!

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Um aspecto importante dos grãos é a existência de corpos protéicos (protein bodies -PB), organelas presentes nas células do endosperma maduro. Os corpos proteicos podem ser divididos em dois grupos: PB-I e PB-II, de acordo com sua solubilidade. PB-I é insolúvel em água, se misturando apenas em solventes orgânicos, enquanto PB-II é solúvel em água.

Ok, mas o que uma organela do grão tem a ver com o desenvolvimento de vacinas?

Acima falamos sobre os obstáculos que um antígeno da vacina de mucosa enfrentaria até conseguir disparar a resposta no sistema imune específico dessa região. Os cientistas entenderam então, que uma maneira de proteger o imunizante, seria inseri-lo em uma cápsula que o protegesse até chegar na região de interesse.

E aqui que entra o papel do arroz. Os PBs agem como uma cápsula natural, capaz de levar o antígeno de maneira intacta até as regiões gastrointestinais.

Para testar esse “sistema de entrega”, pesquisadores do Japão focaram no problema que mais afeta crianças em todo o mundo: doenças que levam à diarreia intestinal severa e que por vezes pode levar ao óbito. A cólera é uma dessas doenças, cujo agente infeccioso é a bactéria Vibrio cholerae.

Com isso em mente, os pesquisadores desenvolveram um arroz transgênico (MucoRice-CTB), inserindo o gene codificante da subunidade B da toxina colérica (CTB) no DNA do arroz, fazendo com que seja capaz de expressar e acumular essa proteína, principalmente nos corpos proteicos (PB-I e II).

Portanto, quando administrado oralmente, as CTBs associada aos corpos protéicos PB-II (solúveis) são rapidamente liberadas (garantindo a resposta imune das partes superiores do trato gastrointestinal), enquanto a outra porção associada aos PB-I (insolúveis), apresentam liberação mais lenta, chegando até os intestinos onde exercer sua ação imunizante.

Outras plantas (como cenoura, batata, soja, tomate e tabaco) poderiam ser utilizadas para o desenvolvimento dessa vacina, uma vez que também apresentam PBs. Porém, alguns motivos fazem do arroz, um sistema de entrega mais interessante e viável.

Primeiramente, o arroz é um dos cereais mais produzidos no mundo (pelos 5 continentes) e devido ao seu baixo custo faz parte da dieta alimentar de milhões de pessoas (principalmente na Ásia).

Além da grande oferta e baixo custo, que por si só já são bastante atrativos, um grupo de pesquisadores verificou que a proteína CTB recombinante é mais estável no arroz transgênico do que em outras plantas. Mesmo após 3 anos estocados em temperatura ambiente, a MucoRice-CTB foi capaz de proteger contra a diarreia induzida pela Vibrio cholerae em modelos animais.

Essa estabilidade e custo são muito interessantes, uma vez que permite a democratização dessa vacina, inclusive nas áreas mais remotas e pobres no mundo, onde há grande mortalidade associada às doenças que levam à diarreia intestinal, principalmente nas crianças.

Passando dos modelos animais para humanos, um estudo clínico randomizado de fase I foi publicado esse ano pela revista The Lancet Microbe, pertencente ao grupo The Lancet, um dos grupos mais antigos e prestigiados do mundo quando o assunto é publicação científica na área médica.

Nesse estudo, a MucoRice-CTB foi administrada em quatro doses (com intervalos de 2 semanas entre elas) a 226 homens, de 20 a 40 anos. Como resultado, os pesquisadores verificaram que essa vacina apresenta boa resposta imunogênica e segurança.

 

 

Então, respondendo à pergunta do título desse artigo: AINDA não podemos comer vacinas, mas essa tem sido uma real possibilidade para o futuro. Muitos passos e aperfeiçoamentos ainda são necessários, porém a existência de uma vacina comestível, eficaz, segura, barata e de fácil transporte tem se mostrado cada dia mais próxima.

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Referências:

Hiroshi Kiyono, Yoshikazu Yuki, Rika Nakahashi-Ouchida, Kohtaro Fujihashi, Mucosal vaccines: wisdom from now and then, International Immunology, 2021.

Yuki, Y. et al. Oral MucoRice-CTB vaccine for safety and microbiota-dependent immunogenicity in humans: a phase 1 randomised trial. 2021.

Cholera vaccine delivered via a cup of rice water.

 

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