Guia para tomada de decisões utilizando ensaios clínicos randomizados

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Nos baseamos em evidências científicas de ensaios clínicos randomizados e controlados para a tomada de decisões. Mas será que entendemos todos os elementos dentro do ensaio, e interpretamos os resultados de forma correta antes de aplicar na rotina clínica?

Um artigo editorial publicado na Eye, uma revista do grupo Nature, forneceu um guia para clínicos interpretarem estudos randomizados e controlados.

Como usar os dados de um ensaio clínico na prática?

Os ensaios clínicos randomizados e controlados por placebo (RCTs, do inglês randomized controlled trials) são aqueles trabalhos de maior nível de evidência científica.

Quando projetados e executados de forma otimizada, grandes RCTs equilibram os fatores conhecidos e desconhecidos que podem afetar o resultado de interesse. A inclusão de um grupo placebo e o alto número amostral implicam, teoricamente, em um efeito observado exclusivamente impulsionado pela intervenção/exposição (por exemplo, medicamento ou cirurgia).

Assim como no artigo publicado na revista Eye, vamos focar em quatro elementos para interpretar os RCTs, e utilizar os dados encontrados nesses estudos na rotina clínica: (1) risco de viés, (2) poder estatístico, (3) efeito do tratamento e (4) aplicabilidade.

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Risco de viés

O viés encontrado nos RCTs pode afetar significativamente o desfecho do estudo e, consequentemente, a conduta clínica. Portanto, esse é o primeiro critério a ser avaliado no estudo!

Existem alguns tipos de vieses que podem afetar os ensaios clínicos, mas não vamos entrar em detalhes técnicos quanto a cada um deles. Apenas para conhecimento, é importante avaliar o estudo quanto a:

  1. Viés de seleção: diferença fundamental entre os pacientes incluídos nos braços de tratamento de um estudo devido à maneira como os pacientes foram alocados nos grupos de tratamento. Ou seja: uma amostra mal escolhida, não representativa.
  2. Viés de desempenho: pode estar presente se houver diferenças entre os grupos de estudo como resultado de diferenças sistemáticas no desempenho fora do tratamento do estudo recebido. Isso acontece quando o esquema de mascaramento das amostras é falho. Por isso, ensaios clínicos duplo-cego ou triplo-cego oferecem dados mais robustos.
  3. Viés de detecção: a possibilidade de diferenças entre os grupos de comparação em relação à forma como os resultados são medidos ou avaliados. É ideal que os pesquisadores que fazem as análises também sejam “cegados”.
  4. Viés de atrito: sempre há casos de desistência dentro de um RCT. Se uma causa de abstinência estiver presente – ou mais predominante – nos grupos de comparação, o desequilíbrio de abstinência pode afetar os resultados e as conclusões extraídas do estudo.
  5. Viés de relato: acontece quando o pesquisador tem a preocupação de relatar os dados encontrados, resultando em omissão dos resultados não significativos.

Poder estatístico

O poder estatístico inclui o cálculo de quantos participantes são necessários para um estudo específico – considerando recrutamento, randomização, administração de intervenções, acompanhamento de resultados e análise – para detectar uma diferença mínima importante no resultado primário de interesse.

Logo, o cálculo do tamanho da amostra é um componente crítico, e afeta a capacidade do estudo de responder corretamente à pergunta primária do estudo.

Todo RCT indica a meta de pacientes que pretende alcançar até o final do trabalho, e o médico precisa estar ciente de avaliar quantos participantes foram necessários (e se a meta foi alcançada) antes de realizar condutas baseada em resultados de RCTs.

Um exemplo: há um protocolo que investiga a eficácia de injeções intravítreas de aflibercepte para retinopatia diabética. Para identificar uma diferença mínima (de 15%) entre tratamento e placebo com 89% de acurácia, são necessários pelo menos 386 indivíduos. Um número amostral menor com desfecho significativo pode ser resultado apenas um viés de seleção de amostra.

Um detalhe importante: durante os ensaios clínicos, geralmente há abandono do tratamento, perda de seguimento ou outros motivos que excluem pacientes. Sempre estar atento a esses números!

Efeito do tratamento

Para considerar o efeito do tratamento e aplicar, de fato, os resultados dos ensaios clínicos, é necessário avaliar a precisão e a relevância das estimativas encontradas.

A precisão é definida pelo intervalo de confiança (IC95%). O intervalo de confiança IC95% representa o intervalo de valores em que o clínico pode ter 95% de confiança de que o verdadeiro efeito do tratamento está dentro.

Ou seja, quanto menor o range dentro do IC95%, melhor! Afinal, grandes intervalos dentro do IC95% podem indicar que o verdadeiro efeito está em qualquer lugar dentro de uma ampla faixa de valores.

Além disso, é possível dois cenários diferentes, que necessitam a análise de relevância do médico que está utilizando os dados do RCT para determinar sua conduta: (1) um resultado estatisticamente significativo não necessariamente se traduz em uma diferença clinicamente significativa entre os grupos e, inversamente, (2) diferenças clinicamente importantes entre os grupos observadas não são estatisticamente significativas – principalmente quando o tamanho da amostra é pequeno e a estimativa é imprecisa.

Os médicos devem aplicar uma combinação de discernimento clínico, experiência e valores estabelecidos de diferença mínima na literatura para determinar se o efeito do tratamento observado é, de fato, clinicamente relevante.

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Aplicabilidade

A aplicabilidade dos resultados do estudo é fundamental para que os benefícios observados do tratamento se traduzam em benefícios clínicos para os pacientes. Ao avaliar a aplicabilidade dos resultados dos RCTs, há vários fatores a serem considerados, alguns já mencionados.

Em primeiro lugar, a população de estudo usada no estudo deve ser comparável à população de pacientes do clínico. Se os critérios de inclusão/exclusão usados ​​no estudo forem muito rigorosos, é possível que o efeito do tratamento observado não se traduza na população geral de pacientes do clínico.

Outro ponto é a viabilidade da prestação da intervenção e a experiência do profissional de saúde são fatores importantes que afetam a aplicabilidade. A intervenção deve ser razoável no que diz respeito às demandas de adesão ao paciente no cenário do mundo real. Um tratamento pode ser eficaz em um ambiente controlado, mas se criar demandas não razoáveis ​​para o paciente ou profissional de saúde, sua eficácia pode ser diferente.

O artigo cita um exemplo clássico na área de oftalmologia: um RCT que abordou a terapia anti-VEGF intravítrea para degeneração macular relacionada à idade que exigia terapia mensal fixa por 24 meses.

Os resultados encontrados não puderam ser replicados na prática, pois a adesão à terapia anti-VEGF intravítrea mensal não era viável para muitos pacientes. Assim, a aplicabilidade é uma consideração fundamental para o clínico ao decidir se deve ajustar sua prática clínica com base nos resultados de um RCT.

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Referências:

Thabane, A., Phillips, M.R., Wong, T.Y. et al. The clinician’s guide to randomized trials: interpretation. Eye 36, 481–482 (2022). https://doi.org/10.1038/s41433-021-01866-7

 

 

 

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