“Três estranhos idênticos” e o determinismo genético

três estranhos idênticos

O documentário “Três Estranhos Idênticos” lançado em 2018, retrata a história de Eddy GallandDavid KellmanRobert Shafran, à princípio três estranhos de 19 anos, que ao se conhecerem em Nova Iorque na década de 1980 descobrem que são trigêmeos separados após o nascimento.

O que parece ser uma história feliz e de reencontros, que garantiu fama internacional para esses três jovens, traz também segredos e detalhes perturbadores que nos levam à importantes reflexões.

Esse documentário, dirigido por Tim Wardle e roteirizado por Grace Hughes-Hallet, foi bem recebido pela crítica, contando com 96% de aprovação demonstrado pelo Rotten Tomatoes. Além disso, foi indicado à várias premiações, sendo premiado na categoria Melhor Direção em Documentário no DGA Awards 2019 e com o Troféu Especial do Júri no Festival de Sundace 2018.

 

O FILME

Antes de tudo é importante um alerta: esse texto contém spoilers!

Imagine o seguinte cenário: você chega em uma nova faculdade ou trabalho, sem conhecer ninguém. O que você faria se boa parte das pessoas começasse a agir como se te conhecesse? Perguntando das suas férias, da sua família, dando beijos e abraços?

O documentário se inicia com o depoimento empolgante de Robert Shafran relatando exatamente essa situação. Ao ingressar em uma faculdade comunitária em Nova York, no início da década de 80, “Bobby” se deparou com essa recepção calorosa (e muito estranha).

Essa sensação de estranheza só aumentou, quando um outro aluno que, após fazer perguntas pessoais, chegou à seguinte conclusão: “Você tem um irmão gêmeo e ele é meu melhor amigo”. Dessa forma, Bobby conhece Eddy Galland, seu irmão gêmeo perdido.

A semelhança e a coincidência absurda que fez os caminhos dos dois se cruzarem, chamaram a atenção da comunidade. Logo, a história dos gêmeos separados no nascimento e adotados por famílias diferentes tomaram Nova York, sendo publicada em jornais locais.

O que ninguém poderia esperar, é que enquanto Bobby e Eddy se conheciam e comemoravam esse reencontro, uma outra família se chocava ao ver uma foto impressa no jornal. Nessa foto, estavam Eddy e Bobby posando para o fotógrafo, mas a família Kellman só conseguiam enxergar a imagem duplicada de David, o filho adotado há 19 anos.

Se já é bastante empolgante e assustador encontrar um irmão gêmeo perdido por aí, imagine encontrar mais um!

A história dos trigêmeos que se encontraram sem querer recebeu muita atenção. Os irmãos passaram a dar entrevistas em jornais, rádios e programas televisivos. O que mais chocava a todos, eram as semelhanças (não só físicas) entre esses irmãos criados em famílias diferentes.

Durante o documentário, aparecem trechos de entrevistas e programas, nas quais os jovens se mostravam muito animados com suas semelhanças, enfatizando as expressões faciais, gestos, gosto por mulheres, roupas, cigarros e outras “coincidências”.

O sucesso foi tão grande, que chegaram a ser convidados para participar de um filme e abriram o próprio restaurante, chamado Triplets.

três estranhos idênticos

Coincidência estranha ou planejada?

Em segundo plano, enquanto os trigêmeos aproveitavam a fama, o documentário também mostra a luta dos pais adotivos ao buscar as verdadeiras explicações sobre a separação das crianças através de registros da agência de adoção responsável.

A partir daí, o drama e a tensão passam a dominar a narrativa da história. A separação e adoção dos três recém-nascidos por três famílias diferentes, não foram apenas resultados da casualidade. As crianças foram divididas intencionalmente por três famílias, que apresentavam condições financeiras diferentes e que já contavam com uma filha.

A explicação para isso? Um experimento conduzido pelo psiquiatra austríaco Peter Neubauer, que pretendia esclarecer os papéis da genética e do ambiente na formação do indivíduo, focando principalmente na influência na criação dada pelos pais.

Como parte do protocolo experimental, os trigêmeos foram acompanhados ao longo de suas vidas, com visitas de especialistas que realizavam testes cognitivos, psicológicos e comportamentais das crianças, além de acompanharem seus registros médicos.

Como demonstrado pelo documentário, as famílias não sabiam que seus filhos tinham irmãos e que eram partes de um experimento desse tipo. Foram informados apenas, que a agência de adoção responsável estava acompanhando todas as crianças, para entender o impacto da adoção em suas vidas (o que acabava justificando todas aquelas visitas ao longo dos anos).

A partir do momento que a verdade vem à tona, o experimento é interrompido, porém os detalhes dos estudos, assim como seus resultados, são sempre encobertos por uma névoa suspeita até os dias de hoje.

Ao longo do documentário, essa jornada dos trigêmeos em busca da verdade é bastante detalhada, dando ênfase também para os impactos que essa revelação trouxe para suas vidas.

três estranhos idênticos

A busca pelo outro eu

O documentário “Três Estranhos Idênticos” nos traz importantes reflexões sobre assuntos relacionados ao desenvolvimento humano, ética e ciência.

A primeira parte do documentário, que foca principalmente no reencontro e euforia desses jovens, é bastante emocionante e cativante. E fica claro que esse sentimento de empolgação que o espectador tem, foi a mesma comoção gerada por essa história lá na década de 1980, há 40 anos atrás.

Histórias como essa costumam chamar muito a nossa atenção. A possibilidade de encontrar alguém exatamente igual à você ao dobrar à esquina, mexe com nossas vontades e ilusões. Como seres humanos individuais, é natural que tenhamos a sensação de solidão e incompletude.

três estranhos idênticos

Se enxergar como um indivíduo único no mundo, pode ser bastante solitário, e o imaginário de existir um outro “eu” acaba sendo bastante atraente. Por isso, a fim de minimizar essa solidão, parte-se para a busca do encontro de semelhanças com o outro, pela projeção do “eu” em outro indivíduo. Tanto que nossa busca romântica, por exemplo, acaba sendo por pessoas que “nos completam” e que sejam parecidas conosco.

Essa espécie de fetiche narcisista, explica em grande parte, a euforia dos trigêmeos de encontrar mais duas pessoas iguais a eles e a comoção das pessoas ao redor que passaram a imaginar como seria se encontrassem alguém exatamente igual.

Isso é bastante evidenciado ao longo do documentário pelo esforço em enfatizar e valorizar as semelhanças entre os trigêmeos. As diferenças acabam ficando em segundo plano, fazendo com que os três indivíduos fossem vistos como uma única unidade, com as mesmas roupas, gestos e ações.

O curioso nesse roteiro, é que a narrativa vai se dando de uma forma que a valorização das semelhanças vai mudando ao longo do tempo, juntamente com o amadurecimento dos personagens dessa história.

No momento do reencontro dos trigêmeos, o foco é inteiramente nas semelhanças. Conforme o tempo vai passando, as diferenças começam a aparecer, até que em dado momento, as diferenças ditam a narrativa dos acontecimentos, incluindo conflitos causados pelo fato de, como seres humanos, não sabermos lidar com as diferenças dos outros.

Genética ou ambiente?

Outra discussão importante que é levantada pelo documentário é sobre a influência da genética e do ambiente na formação do indivíduo. Essa questão é sempre alvo de debate no mundo científico.

três estranhos idênticos

O experimento do Dr. Peter Neubauer teve início na década de 1960, época em que as novidades do DNA e da genética estavam em alta. Inclusive, nessa época, priorizava-se a ideia determinista do DNA e as semelhanças entre os gêmeos criados em diferentes famílias seriam as provas necessárias para essa teoria.

No documentário, essa ideia fica bastante evidenciada pelo depoimento de Natasha Josefowitz, assistente de Neubaur e, aparentemente, uma entusiasta do determinismo genético.

Hoje em dia, apesar de não termos conhecimento da proporção real entre esses fatores, sabemos que a formação do indivíduo é influenciada pela filogenética, pela ontogenética e pelas experiências as quais o indivíduo foi exposto (incluindo o ambiente em que vive e a cultura na qual é inserido).

O documentário também deixa isso claro ao mostrar os irmãos adultos, lado a lado. Apesar de compartilharem o mesmo material genético no início de suas vidas, eles são diferentes, inclusive em suas aparências físicas.

“Três estranhos idênticos” e o determinismo genético

Até que ponto a ciência pode ir?

Por fim, outra reflexão que o filme nos traz é sobre a ética envolvendo pesquisas científicas. Até onde podemos ir para esclarecer algum assunto?

Em 1947, em resposta às Segunda Guerra Mundial o código de Nuremberg foi desenvolvido com o objetivo de dar limites aos experimentos com seres humanos, garantindo a integridade física e emocional dos participantes da pesquisa.

No início da década de 60, esse código ainda era considerado novo, de forma que muitas pesquisas foram realizadas sem seguir critérios éticos mais rígidos. O experimento de Neubauer é um exemplo de metodologia científica que não garante os direitos humanos básicos aos sujeitos do estudo.

E mesmo que esse experimento fosse “ético” e pudesse ser conduzido, sua principal questão ainda não poderia ser respondida de maneira eficaz, devido à quantidade de variáveis às quais todos nós somos submetidos todos os dias, incluindo os participantes dessa pesquisa.

Em suma, uma das principais mensagens que o documentário nos traz é que, sabendo que as experiências, os estímulos e o ambiente contribuem de forma considerável na formação do indivíduo, o verdadeiro impacto desse experimento na vida dos gêmeos estudados (sim, outras crianças também foram envolvidas) jamais poderá ser realmente calculado ou recompensado.

 

Motivos para assistir

Além de ser baseado em um relato real, o que já costuma chamar bastante atenção por si só, o documentário “Três Estranhos Idênticos” levanta questionamentos importantes para profissionais e estudantes da área da saúde.

O ponto forte e mais importante do documentário, é o debate sobre ética profissional, ao levantar importantes questionamentos sobre a conduta do profissional da saúde não só durante a clínica, mas também durante a realização de pesquisas científicas.

Por outro ângulo, essa história traz a nossa atenção para o debate sobre qual seria a principal influência para a construção do indivíduo: seu DNA ou suas experiências. E o mais interessante, é o fato de fazerem isso de uma maneira temporal, refletindo qual era o pensamento majoritário nas décadas de 60 e 80, e como esse assunto é visto atualmente.

Para os entusiastas da metodologia científica, o documentário também mostra a importância de um bom desenho experimental, a relevância de se ter uma pergunta clara a ser solucionada e a necessidade de se determinar de maneira cuidadosa os grupos experimentais de um estudo científico.

 

Onde encontrar

O documentário “Três Estranhos Idênticos” pode ser encontrado na plataforma de streaming Netflix ou como locação no Youtube. Para acessar o trailer clique aqui.

FICHA TÉCNICA

Lançamento: Global – 29 de Junho de 2018 / Brasil – 28 de Junho de 2019
Duração: 96 minutos
Gênero: Documentário / Biografia
Direção: Tim Wardle
Roteiro: Grace Hughes-Hallet
Elenco: Eddy GallandDavid KellmanRobert Shafran
Título original: “Three Identical Strangers”.

 

Gostou desse post? Você pode encontrar mais dicas de livros, filmes e séries do nosso Portal!

________________________________________________________________________

Referências: 

Fetichismo e narcisismo: a base do capitalismo? 

Experiment on identical siblings separated at birth: ethical implications for researchers, universities, and archives today

 

Google search engine

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui