Todos vamos morrer um dia. E por mais que saibamos disso, a maioria das pessoas decidem viver apenas quando a vida já está indo embora. É com esse pensamento que termina o primeiro livro de AnaMi. Mas, quem seria a pessoa que escreve com tanta certeza sobre um dos momentos mais difíceis da vida? E por que será que suas palavras ressoam tão forte em nós enquanto as lemos?
Entrelinhas da Alma: Um Tributo à Escrita de AnaMi
Acabamos de passar pelo final de um ano. Momento em que muitos de nós nos reunimos com as pessoas a quem amamos para celebrar as festas que marcam a chegada de um novo ano. Novo ano… Hoje é o primeiro dia dessa nova volta que daremos ao redor do sol. E logo no primeiro ano a primeira frase que lemos é que todos vamos morrer um dia.
Será que não tinha nenhum assunto mais leve para começar? Nenhuma boa notícia? Nenhum medicamento novo, vacina nova ou tecnologia nova que vá nos ajudar a combater alguma patologia?
A verdade é que talvez a resposta seja sim para alguma das questões acima, mas acredito que o primeiro dia do ano seja ideal para tratar de um assunto tão importante e por meio dele fazer um tributo a uma pessoa que nos deixou lições valiosíssimas.
Mas, quem é essa pessoa?
Ana Michelle Soares, carinhosamente chamada de AnaMi, descobriu um câncer de mama aos 28 anos. Jornalista de formação, sempre foi curiosa e determinada e buscou os melhores tratamentos que estavam disponíveis. Realizou a remoção do tumor e foi submetida ao protocolo de quimioterapia e radioterapia.
Com 32 anos, quase próxima de receber alta descobriu que o câncer havia voltado e agora atingira outros órgãos. Não havia possibilidade de cura física. O tratamento agora teria por objetivo o controle da doença e de sintomas físicos e proporcionar qualidade de vida até o fim.
Nesse momento a paciente sente necessidade de comunicar tudo o que sente, tudo o que passa a descobrir e tudo o que lhe vem à mente. Mas, como fazer isso? Escrevendo.
Enquanto eu respirar
Em 2019 AnaMi lança seu primeiro livro. Enquanto eu respirar: dançando com o tempo e com todas as possibilidades de estar viva até o último suspiro, nos apresenta uma mulher forte, determinada, guerreira, marcado por um humor ácido e que tem muita coisa para falar. Na obra a jornalista nos conta sobre como descobriu o retorno da doença, sobre os sentimentos que vivenciou, sobre as escolhas feitas antes do diagnóstico e sobre como isso impactou o pós-conhecimento de seu estado de saúde. Suas palavras nos mostram que possuía o desejo vívido e intenso de morrer vivendo.
Ao descobrir que não havia mais cura física para o câncer, Ana entra em contato com o universo dos cuidados paliativos e nos mostra em cada relato a possibilidade e importância do paciente paliativo ser “paliAtivo”.
Nesse livro ela narra o encontro que teve com Renata, paciente também paliativa e como as duas se tornaram grandes amigas. Descobrimos na obra que juntas lançaram o perfil @paliativas no Instagram e passaram a disseminar o que eram cuidados paliativos sob a ótica de quem os vive de fato.
Ao longo das mais de 200 páginas vemos AnaMi completamente desnuda de tabus, certezas e vaidades. A cada página é como se estivéssemos tendo a chance de ouvi-la do nosso lado e em muitos momentos a sensação é que ela está nos dando um chacoalhão.
Ana traz ainda o conceito das bucket list (lista de desejos) e nos estimula a fazermos a nossa. Mas, o que mais me chamou a atenção nessa obra foi ter a chance de compreender o conceito de finitude crônica, pela qual todos nós estamos passando.
Vida inteira: uma jornada em busca do sentido e do sagrado de cada dia
Contrariando as expectativas Ana Michelle ressignificou a vida, os cuidados paliativos e em 2021 veio seu segundo livro. Vida inteira: uma jornada em busca do sentido e do sagrado de cada dia, nos mostra o quão importante é estar bem em todas as esferas da vida.
Enquanto no primeiro livro a jornalista passa ao leitor o que sentiu ao descobrir a doença e sua volta e como foi a entrada no mundo dos cuidados paliativos, na segunda obra descobrimos o que é sagrado de fato a cada um de nós e como isso impacta em nossa qualidade de vida.
As páginas são permeadas por frases, pensamentos e trazem em cada etapa a abertura escrita por um terapeuta holístico e xamânico. Ana nos mostra, em sua busca pelo sagrado, a necessidade de nos conectarmos conosco e com o que movimento esse sagrado em nós, bem como relata as experiências que teve com alguns picaretas que utilizam da boa fé e do momento difícil desses pacientes para tirarem vantagem.
O maior ensinamento que a jornalista traz nesse segundo livro é que a descoberta de um diagnóstico, por mais desfavorável que seja, transcende a biologia humana.
Entre a lucidez e a esperança: um olhar sobre a finitude para quem não tem tempo a perder
Ana Michelle descobriu o câncer aos 28 anos, tendo vivido sua volta aos 32 anos. Indo na direção oposta do que muitos a falavam ela chegou aos 40 anos. Convivendo por mais de uma década com a doença, ela viu em meados de 2022 a doença se agravar. Haviam surgido lesões no cérebro e foi necessária a introdução de radioterapia agressiva que trouxeram efeitos colaterais intensos.
Foi nesse momento que a jornalista criou a última lista de desejos, a qual incluía ter uma casa na montanha, celebrar os 40 anos, escrever o último livro.
Entre a lucidez e a esperança: um olhar sobre a finitude para quem não tem tempo a perder, nos leva ao centro das emoções de AnaMi. Ciente de que o fim da vida, da maneira como a conhecemos, estava próximo, nossa autora escreve esse livro entre idas e vindas do hospital. Muitas vezes, como ela própria relata nas páginas que formam essa preciosidade, o escreveu no leito do hospital.
Seu último livro foi lançado em março de 2023, quase dois meses após Ana ter ido dançar com o vento (era assim que ela se referia a morte). Suas palavras, no entanto, estão mais vivas do que nunca e seus ensinamentos seguem produzindo frutos em nosso meio.
Recentemente o Congresso aprovou uma política pública de cuidados paliativos e é cada vez maior a inserção que conseguimos na mídia, por meio de filmes, séries e telenovelas. Cuidados Paliativos se tornou um tema de discussão, de debate, de busca, de obrigatoriedade na graduação em medicina. É fato que ainda temos muito a avançar, mas é verdade que estamos hoje num lugar que nunca imaginamos que estaríamos.
Vamos refletir sobre a nossa finitude
Nesse primeiro dia do ano, quero convidar você a conhecer mais da obra de Ana Michelle Soares. Nada melhor para iniciar um novo ano, do que refletindo sobre nossa finitude, sobre nosso processo de morrer, sobre nossas escolhas sobre o que é sagrado a nós.
Compreendendo a finitude da vida e o pouco tempo que temos aqui neste mundo talvez seja a primeira resolução do novo ano que tenhamos que cumprir. Isso nos data a chance de viver de forma leve, mais completa e mais intensa.
Por fim, convido você que leu até aqui para abrir a janela, ir ao ar livre, fechar os olhos e respirar bem fundo. Sinta o aroma que sobe das flores. Sinta as árvores que balançam suas folhas. Sinta a vida que temos diante de nós esperando para ser vivida de forma inteira.
E, enquanto eu respirar, entre a lucidez e a esperança, desejo que ao sentir o vento batendo em seu rosto, você sinta AnaMi dançando com ele enquanto nos deseja e incentiva a vivermos uma vida inteira.
—
Referências:
SOARES, Ana Michelle. Enquanto eu respirar: Dançando com o tempo e com todas as possibilidades de estar viva até o último suspiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2019. 240 p.
SOARES, Ana Michelle. Vida Inteira: Uma jornada em busca do sentido e do sagrado de cada dia. 1. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2021. 224 p.
SOARES, Ana Michelle. Entre a lucidez e a esperança: Um olhar sobre a finitude para quem não tem tempo a perder. 1. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2023. 176 p.
