

A primeira menstruação — a menarca — não é apenas um marco simbólico de transição. É também o início de um importante processo fisiológico que acompanha pessoas com útero durante décadas e que, cada vez mais, é reconhecido pela medicina como uma ferramenta clínica valiosa.
Desde 2006, tanto o American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG) quanto a American Academy of Pediatrics (AAP), recomendam que o ciclo menstrual seja considerado um sinal vital em meninas e adolescentes, e que seu monitoramento deve fazer parte da avaliação rotineira de saúde, assim como os demais sinais vitais. A justificativa por trás dessa recomendação, embora inicialmente focada na puberdade e adolescência, se estende por toda a vida fértil da mulher.
Puberdade e adolescência: a importância da observação desde o início
Durante a puberdade e adolescência, o corpo está em profunda transformação, à medida que o eixo hipotálamo-hipófise-ovariano amadurece. Os primeiros anos após a menarca são, comumente, marcados por ciclos anovulatórios e irregularidades fisiológicas. Ainda assim, entender o que é esperado nessa fase e o que foge ao padrão é essencial.
Nesse sentido, associações internacionais já reconhecem que a adolescência oferece uma janela única de observação: identificar padrões anormais nessa fase permite diagnóstico precoce, acompanhamento e, muitas vezes, intervenções que podem reduzir complicações futuras.
Ensinar meninas a conhecerem o funcionamento de seus ciclos menstruais não apenas promove educação em saúde, mas também permite:
Monitorar o desenvolvimento puberal saudável:
A regularidade e as características do ciclo menstrual estão diretamente ligadas à maturação do eixo hipotálamo-hipófise-ovariano, ao estado nutricional e ao balanço energético da adolescente.
Detectar precocemente condições de saúde que podem impactar a vida adulta:
- Disfunções ovulatórias (ex: SOP, doenças da tireoide, hipogonadismo hipotalâmico).
- Distúrbios alimentares e disfunção hipotalâmica funcional (DHF).
- Alterações na saúde óssea (risco de baixa densidade e osteoporose).
- Transtornos de saúde mental (relacionados ao estresse ou à oscilação hormonal).
- Distúrbios de coagulação (quando há sangramento excessivo).
Observar padrões menstruais que merecem investigação:
- Menarca ausente após 3 anos do desenvolvimento mamário.
- Menarca ausente aos 14 anos com sinais clínicos associados (exercício excessivo, hirsutismo, distúrbios alimentares).
- Intervalos muito curtos (menos de 21 dias) ou longos (mais de 45 dias).
- Ciclos com intervalos superiores a 90 dias.
- Menstruações muito prolongadas (mais de 7 dias) ou muito intensas.
Ao avaliar o ciclo menstrual com regularidade, pode-se identificar sinais precoces de desequilíbrio hormonal, nutricional ou psicológico — contribuindo para a prevenção de doenças crônicas e o cuidado integral da adolescente.
Vida adulta: o ciclo menstrual como marcador contínuo de saúde
Embora as diretrizes do ACOG e da AAP enfatizem o ciclo menstrual como sinal vital principalmente em adolescentes, a comunidade científica tem começado a reconhecer que a mesma lógica se aplica à saúde de mulheres adultas.
Em adultas, o ciclo menstrual continua sendo uma ferramenta clínica valiosa para rastreio de condições que podem comprometer a qualidade de vida e a saúde a longo prazo.
Avaliar o ciclo menstrual pode trazer informações não apenas sobre desbalanços hormonais e doenças ginecológicas mais comuns (como sangramento uterino anormal (SUA), síndrome dos ovários policísticos, dismenorreia intensa (primária ou secundária), endometriose e distúrbios da tireoide), mas também sobre:
O ciclo menstrual pode agravar ou modular sintomas de transtornos como depressão, ansiedade, transtornos alimentares, transtornos de personalidade e transtorno bipolar.
A fase pré-menstrual está associada a um maior risco de internação psiquiátrica e tentativas de suicídio em mulheres com vulnerabilidades prévias.
A disfunção ovulatória e o hipoestrogenismo persistente podem afetar negativamente a saúde óssea, e a avaliação do ciclo pode auxiliar no rastreio de riscos futuros como osteoporose, doenças cardiovasculares e câncer de mama.
Ciclos anormais não são apenas um incômodo.
Podem ser o primeiro indício de doenças estruturais (como miomas, pólipos e adenomiose), de alterações hormonais (como disfunções tireoidianas ou hiperprolactinemia), de condições inflamatórias crônicas (como a endometriose) ou até de doenças sistêmicas silenciosas, como distúrbios alimentares, estresse crônico e déficits nutricionais. Portanto, a saúde menstrual deve ser parte integrante das consultas preventivas em todas as fases da vida.
Partindo dessa visão do ciclo menstrual, surge o questionamento: suprimir ou não suprimir?
Esse entendimento nos leva a uma reflexão importante para a prática clínica: muitos métodos contraceptivos hormonais suprimem a ovulação e, portanto, a possibilidade da avaliação do ciclo menstrual como sinal vital.
Levando isso em conta, será que essa deve seguir sendo a primeira escolha em termos de aconselhamento contraceptivo? Embora sejam ferramentas válidas, eficazes e seguras para muitas indicações, é necessário reconhecer que a ausência do ciclo elimina esse sinal vital — que, quando presente, poderia sinalizar alterações sistêmicas precoces.
A supressão do ciclo, portanto, não é isenta de consequências.
Considerar o ciclo menstrual como um sinal vital é reconhecer o corpo feminino em sua complexidade e ciclicidade, e também adotar uma abordagem preventiva e integral à saúde da mulher, em que o ciclo se torna não apenas um reflexo reprodutivo, mas um termômetro da saúde física, mental, hormonal e social.
Para os profissionais de saúde, isso representa um convite: olhar com mais atenção para os padrões menstruais, escutar os relatos das pacientes com curiosidade clínica e aproveitar as pistas que o corpo fornece — ao longo de toda a vida reprodutiva.
A menstruação é muito mais do que um evento mensal. É um espelho biológico — e, muitas vezes, o primeiro a refletir que algo não vai bem.
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Referências:
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