Em seu livro “Mulheres Invisíveis: o viés dos dados em um mundo projeto para homens”, Caroline Criado Perez aborda como o mundo, muitas vezes, foi projetado com base em padrões masculinos, ignorando as necessidades, realidades e experiências das mulheres.
Dentre os diversos capítulos e temas do livro, o que mais chama atenção (para nós, da área da saúde) é como a medicina é predominantemente baseada no corpo masculino, levando a diagnósticos errados e tratamentos menos eficazes para mulheres.
Mulheres Invisíveis: o viés dos dados em um mundo projeto para homens
O livro “Mulheres Invisíveis: o viés dos dados em um mundo projeto para homens” (versão original – Invisible Women: Exposing Data Bias in a World Designed for Men) explora a lacuna de dados de gênero em diversas áreas, como saúde, trabalho, urbanismo, transporte, tecnologia e políticas públicas.
Ao utilizar exemplos para destacar que essa invisibilidade feminina é prejudicial não só para as mulheres, mas para a sociedade como um todo, a autora propõe a inclusão de perspectivas de gênero na coleta e análise de dados como forma de promover igualdade e justiça.
Mulheres Invisíveis é um livro impactante para abrir debates sobre a desigualdade de gênero que é estrutural na nossa sociedade.
O livro Mulheres Invisíveis é dividido em 6 partes: vida cotidiana, ambiente de trabalho, design, consulta médica, vida pública e quando as coisas vão mal. Aqui, vamos falar um pouco sobre a parte 4, que explora como a lacuna de dados de gênero na área da saúde tem consequências graves para as mulheres.
Mulheres Invisíveis – Parte IV: a Consulta Médica
Historicamente, a medicina foi construída com base em estudos feitos principalmente em corpos masculinos, desconsiderando as diferenças biológicas e sociais entre os gêneros. Isso resulta em tratamentos menos eficazes, diagnósticos errados e, em alguns casos, riscos à vida das mulheres.
A pesquisa médica muitas vezes utiliza homens como padrão para estudos clínicos, assumindo que os resultados podem ser aplicados às mulheres. “Quando se mencionam mulheres, estas são apresentadas como se fossem uma variante da humanidade padrão” – relata a autora.
Pense nas aulas de anatomia que teve durante a faculdade. O “corpo humano” era masculino ou feminino? Segundo os estudos, o corpo masculino aparece cerca de 3 vezes mais do que o corpo feminino, ainda que em partes consideradas “neutras” – como braços, pernas. Esse padrão masculino ignora diferenças cruciais, como a composição hormonal, a resposta a medicamentos e as manifestações de doenças.
Como o padrão masculino pode prejudicar a saúde da mulher? Quais os riscos de excluir mulheres dos estudos clínicos?
No livro, a autora explora diversas situações nas quais a “não existência” do padrão feminino é prejudicial para a saúde da mulher. São diversos os exemplos; veja alguns:
O risco cardiovascular
Os sintomas de infarto agudo do miocárdio são clássicos, certo? Dor no peito, irradiando para o braço esquerdo – geralmente em homem de meia vida, sedentário, obeso. No entanto, em mulheres, os sintomas geralmente diferem do “esperado”.
Mulheres são 50% mais sujeitas a um diagnóstico errado de infarto. Isso porque mulheres com infarto tendem a apresentar sintomas de fadiga extrema, náusea e dor nas costas, o que leva a subdiagnósticos e atrasos no tratamento.
Além disso, “o óbito após um infarto é mais frequente em mulheres (…) e mulheres jovens têm quase o dobro de chances de morrer no hospital em comparação com os homens”, destaca a autora.
O uso do AAS também é muito conhecido por ser eficaz na prevenção de um primeiro infarto. Mas adivinha: em homens. Um artigo citado pela autora aponta que, além de não apresentar efeito benéfico em mulheres entre 45-65 anos, o uso do AAS pode ser prejudicial para a maioria das pacientes mulheres.
Quadros de hipertensão também não apresentam os mesmos desfechos em homens e mulheres. As estatinas, amplamente prescritas para redução da pressão arterial, foram majoritariamente testadas em homens. Um estudo que avaliou o uso destes medicamentos em mulheres mostrou que em doses altas, o risco é muito maior para mulheres do que para homens.
Além disso, a autora destaca que “A cada aumento de 20 mmHg na pressão arterial acima dos níveis normais, o risco de morte por doenças coronarianas para mulheres é duas vezes maior do que para os homens”.
Por fim, é importante citar a ausência de biomarcadores específicos para mulheres. Na cardiologia, podemos citar a troponina: valores considerados normais podem ser, na verdade, aumentados, se a paciente for mulher (e que bom que disso já sabíamos, certo?).
A resposta imunológica
Mulheres desenvolvem um número maior de anticorpos. Isso é particularmente problemático após a vacinação – de fato, mulheres apresentam maior risco de reações adversas e complicações graves após vacinas.
Quanto às reações de hipersensibilidade medicamentosa, cerca de 80% das drogas que atualmente foram retiradas do mercado causaram mais reações em mulheres. Se essa população fosse incluída nos ensaios clínicos, talvez esse cenário fosse diferente.
Outro dado que é muito conhecido: mulheres representam cerca de 80% dos casos de doenças autoimunes. No entanto, a grande maioria dos estudos clínicos (incluindo com doença autoimune) são realizados com homens.
Condições predominantemente femininas, mas padrão masculino de estudo
Não são apenas as doenças autoimunes que são conhecidas por serem mais frequentes em mulheres, porém pouco estudadas nessa população. Menos de 15% dos estudos com animais incluem fêmeas – mesmo nas condições “predominantemente femininas”.
O estudo com células também apresenta viés de gênero. Cerca de ¾ das pesquisas com células não apresentam o sexo biológico e, das que fazem, a grande maioria (> 70%) utiliza células masculinas (XY). Dessa forma, a autora questiona: “de quantos tratamentos as mulheres foram privadas porque eles não fizeram efeito nas células exclusivamente masculinas em que foram testados?”.
Até mesmo a saúde reprodutiva feminina, como em casos de endometriose, dismenorreia e síndrome do ovário policístico, as pesquisas são frequentemente subvalorizadas.
Ainda, condições como TDAH e transtorno do espectro autista apresentam problemas diagnósticos quando falamos de homens e mulheres – aos 11 anos, 52% dos meninos com síndrome de Asperger já foram diagnosticados, comparado com 21% das meninas.
A queixa de dor feminina é subestimada
A dor em mulheres também tende a ser menos levada a sério por profissionais de saúde, frequentemente atribuída a fatores emocionais ou psicológicos, ao invés de investigada como algo fisiológico. “Homens que relatam dor em geral recebem prescrição de analgésicos, enquanto mulheres recebem mais calmantes ou antidepressivos”.
Falando em uso de antidepressivos, a depressão, por exemplo, é amplamente estudada em homens (ou então, em ratos machos), ainda que pelo menos 2 vezes mais frequente em mulheres. E aqui, um questionamento: as mulheres são mais deprimidas mesmo? Ou estamos diante de mais um viés de gênero?
Ainda que o tratamento oferecido seja o mesmo para ambos os sexos, as mulheres precisam aguardar mais tempo para serem atendidas – visto que a dor em mulheres é subestimada e a dor em homens, valorizada.
Por fim, é importante lembrar que a sensação de dor em homens e mulheres é diferente. Segundo uma pesquisa, “machos e fêmeas usam tipos diferentes de células (…) para transmitir sinais de dor”. Além disso, o ciclo menstrual altera a sensibilidade à dor das mulheres.
Sugestão de leitura: Dor em mulheres é frequentemente subestimada por profissionais de saúde.
O ciclo menstrual: um grande “vilão” dos ensaios clínicos
O ciclo menstrual faz parte da saúde da mulher. Logo, era de se esperar que os ensaios clínicos levassem em consideração o momento do ciclo menstrual para avaliação de determinado desfecho. Porém, isso não é realidade.
Inclusive, grande parte dos estudos clínicos excluem mulheres justamente por sua variação hormonal, alegando que é necessário “minimizar as possíveis influências do estradiol e da progesterona sobre os resultados da pesquisa”. Como resultado, medicamentos e tratamentos são desenvolvidos com base em como eles funcionam em homens.
Mas e aí, como fazer isso na realidade? Como excluir um dado básico de saúde da mulher no dia a dia? Diversos estudos já mostraram o impacto das diferentes fases do ciclo menstrual na resposta a medicamentos, por exemplo.
Isso sem falar das cólicas menstruais e da TPM.
Até 80% das mulheres experimentam sintomas pré-menstruais, e uma parte delas podem evoluir com distúrbios disfóricos, levando a prejuízos sociais, familiares e profissionais. Ainda assim, a fisiopatologia da condição não é completamente esclarecida, e 40% das pacientes não respondem aos tratamentos propostos.
A dismenorreia, por sua vez, afeta cerca de 90% das mulheres, mas não há muitos estudos sobre esse tema (já para disfunção erétil, que afeta cerca de 20% dos homens, há um mar de trabalhos!).
Já passou da hora de incluir a outra metade da população nos estudos!
A lacuna de dados de gênero é imensa, e na área da saúde, a exclusão das mulheres na coleta e análise de dados resulta em desigualdades graves. Precisamos enfatizar a importância de incluir mulheres em todas as etapas da pesquisa médica, tanto para salvar vidas quanto para melhorar a qualidade dos tratamentos oferecidos.
Por fim, devemos lembrar que, além das diferenças biológicas, os fatores sociais afetam a saúde das mulheres, como o impacto do trabalho não remunerado, maior exposição a certos tipos de doenças e menor acesso a recursos médicos.
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Referências:
Caroline Criado Perez. MULHERES INVISÍVEIS. O viés dos dados em um mundo projetado para homens. Tradução da 1ª ed – Rio de Janeiro, 2022.