Entendendo o Transtorno do Espectro Autista
O Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) é um conjunto de alterações heterogêneas de neurodesenvolvimento, presentes desde o nascimento. Pacientes dentro do espectro podem apresentar dificuldade na interação e/ou comunicação social e interesses e padrões de comportamento repetitivos e restritos.
Na CID-11, o TEA foi reclassificado de F84 para 6A02. A nova classificação segue o modelo do Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (DSM-5), que reúne todos os transtornos dentro do mesmo espectro, com subdivisão relacionada ao tipo e nível de prejuízo da linguagem funcional e deficiência intelectual.
- Autismo Atípico
- Autismo Infantil
- Transtorno Desintegrativo da Infância
- Transtorno com Hipercinesia Associada a Retardo Mental e a Movimentos Estereotipados
- Síndrome de Asperger
- Transtorno Global do Desenvolvimento Sem Outra Especificação
- Outros Transtornos Globais de Desenvolvimento
A OMS estima que 1 a cada 160 crianças tenha TEA. No entanto, essa prevalência vem aumentando progressivamente. O último relatório do CDC indicou que 1 a cada 36 crianças apresenta algum TEA. Os meninos são mais acometidos, na proporção de 4:1.
O início dos sintomas geralmente ocorre desde o nascimento. No entanto, em alguns casos o transtorno pode ser diagnosticado mais tarde, quando a demanda social do indivíduo é maior.
Pacientes com transtorno do espectro autista podem apresentar outras condições concomitantes, como TDAH, Transtorno de Ansiedade Generalizada, Transtorno Bipolar. A presença de Epilepsia associada está relacionada a maior deficiência intelectual e menor capacidade verbal.
Etiologia e Fisiopatologia
A etiologia do TEA é complexa e multifatorial, e ainda não é totalmente elucidada. Há maior peso para os fatores genéticos, que correspondem a cerca de 97-99% dos casos. Mais de 1000 genes já foram identificados relacionados com o transtorno, sendo cerca de 130 os principais. Algumas questões importantes:
- Alteração do número de cópias (CNVs): sugere-se que o aumento ou a redução do número de cópias de genes reguladores de sinaptogênese e vias de sinalização sináptica pode estar envolvido no fenótipo do TEA. A expressividade é variável – ou seja, não é porque a mutação está presente, que o fenótipo irá aparecer.
- Mutações pontuais: diversos estudos já identificaram mutações pontuais associadas ao TEA. A grande maioria é de baixo risco. No entanto, em conjunto (de forma aditiva), pode haver aumento do risco.
- Haploinsuficiência: na maioria dos casos, o mecanismo genômico envolvido no TEA é a haploinsuficiência – a perda de uma das cópias do gene reduz a quantidade do produto gênico produzido. O outro alelo, mesmo sem a mutação, não é suficiente para manter o fenótipo “normal”.
- Mutações herdadas mutações novas: um grande estudo de coorte, com dados populacionais de 5 países diferentes, indicou que cerca de 80% da condição deve-se a influências genéticas hereditárias. No entanto, as mutações novas também apresentam um papel importante no desenvolvimento da doença. As mais frequentes são do tipo CNVs.
- Sobreposição com outros transtornos: há diversas alterações genéticas vistas no TEA que também já foram identificadas em outros transtornos psiquiátricos, TDAH, Transtorno Bipolar e Epilepsia.
- Epigenética:é evidente o papel da epigenética ligada ao TEA. Genes reguladores de cromatina e fatores de transcrição estão envolvidos. Mutações em genes como CHD8 e CHD2, que são reguladores de ligação da cromatina, são de alto risco para a doença.
- Fatores ambientais: cerca de 1-3% dos casos apresentam gatilhos ambientais, como exposição a drogas, infecções ou traumas durante a gestação. No entanto, é necessário lembrar que os fatores ambientais, sozinhos, não são capazes de gerar a condição – são necessárias predisposições genéticas.
Assim como a etiologia, a fisiopatologia ainda não é completamente elucidada, visto a gama de genes envolvidos no transtorno. No entanto, o consenso é que alterações genéticas durante o desenvolvimento podem resultar em um cérebro neurodivergente.
A presença de mutações em genes no desenvolvimento pré-natal ou pós-natal precoce afeta a transmissão sináptica / conectividade neural. Além disso, há uma ativação das células da glia, e liberação de mediadores neruroinflamatórios.
Há uma distorção da hierarquia de tempos neurais – algumas regiões do cérebro respondem mais rápido a estímulos, e outras mais devagar. Os hemisférios cerebrais também apresentam alteração da conectividade, o que resulta na dificuldade de integrar informações.
Na maioria dos casos, as respostas rápidas são associadas aos estímulos sensoriais, gerando uma hipersensibilidade. Regiões associadas ao aprendizado e controle motor estão com processamento mais lento.
Essas alterações levam as alterações de comunicação e interação social, interesses restritos e comportamentos repetitivos.
Há um padrão dos principais genes envolvidos na fisiopatologia?
Devemos lembrar que genes codificam proteínas, que podem ser de múltiplas isoformas, cada uma podendo exercer múltiplas funções celulares. Uma alteração genética pode mudar uma isoforma de uma proteína específica dentro de uma célula, mas estamos falando de mais de 100 genes principais!
Além disso, a função biológica de um determinado gene pode ser altamente dependente de quando e onde uma determinada isoforma de proteína está sendo expressa. Por exemplo, a expressão de um gene pode estar ligado à proliferação celular e à sinapse – depende de que célula estamos falando.
Sugere-se, então, que a fisiopatologia da doença seja de uma forma aditiva: um gene alterado, em uma lista de genes de risco para a doença, altera a produção de uma isoforma da proteína. Em cada célula que essa proteína é encontrada, ela possui uma ação diferente que pode contribuir adicionalmente para um espectro de sinais e sintomas associados ao transtorno. Além disso, diferentes genes alterados contribuem também de forma sinérgica.
Por fim, estamos falando do desenvolvimento neurológico, que é sensível a estímulos externos. O período gestacional é crítico para o cérebro do feto em desenvolvimento. Estresse excessivo, uso de drogas, má alimentação materna. Tudo isso pode influenciar – e não apenas para o TEA.
A sobreposição com genes envolvidos em outros transtornos também pode explicar parte dos sinais e sintomas. Por exemplo, mutações em genes associados também à ansiedade podem influenciar nos comportamentos de sociabilidade. Além disso, sugere mecanismos patofisiológicos comuns entre as doenças.
Há diferenças fisiopatológicas no TEA em meninos e meninas?
Os estudos ainda são controversos, mas algumas questões já foram respondidas:
- As mutações tendem a ser mais prejudiciais em mulheres. Quando uma mulher é identificada com TEA dentro de uma família, há maior chance de outros familiares também apresentarem o transtorno.
- Mulheres têm maior propensão a apresentar deficiência intelectual concomitante. Parte disso pode ser explicado pela presença de algumas mutações no cromossomo X, visto que ele apresenta diversos genes expressos no cérebro. Outras mutações no cromossomo X também são associadas a síndromes que cursam com deficiência intelectual (p.ex. X frágil).
- Pode haver uma diferença de expressão gênica, de número de células e de conectividade em algumas regiões cerebrais com base no sexo. A diferenciação cerebral tipicamente feminina no início do desenvolvimento pode ser menos sensível a interrupções de regulação gênica, que ocorrem em casos de mutações.
- Alguns autores já viram que, na primeira infância, meninos acometidos podem agir com agressividade reativa, enquanto as meninas tendem a se isolar socialmente, e reagem com mudanças emocionais às dificuldades. No entanto, o viés de gênero não pode ser completamente descartado nesses estudos.
Cuidando de um paciente com transtorno do espectro autista
A dificuldade de comunicação social e de lingual podem influenciar na capacidade de aprendizado, especialmente por meio das interações sociais. Há uma dificuldade em planejar, organizar e enfrentar mudanças, especialmente relacionadas aos estudos e ao trabalho.
Uma minoria dos pacientes vive de forma totalmente independente na fase adulta. Alteração / dificuldade de alimentação e sono são consequências funcionais comuns. Ainda, como comentamos, uma parcela considerável de pacientes com TEA podem apresentar outras condições psiquiátricas concomitantes (~70%).
Os objetivos do tratamento são: melhorar o funcionamento social, as habilidades de comunicação e as habilidades adaptativas. Também reduzir os comportamentos negativos / não funcionais.
A terapia deve ser multidisciplinar e contínua, envolvendo pediatra, neurologista, psicólogo, psiquiatra, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional. Quando necessário, um aconselhador genético deve estar envolvido na equipe.
Quando mais cedo o diagnóstico, melhor a resposta terapêutica.
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Referências:
MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE TRANSTORNOS MENTAIS (DSM-5®). 2014.
World Health Organization. (2018). International classification of diseases, 11th revision (ICD-11). World Health Organization.
Manoli DS, State MW. Autism Spectrum Disorder Genetics and the Search for Pathological Mechanisms. Am J Psychiatry. 2021 Jan 1;178(1):30-38. doi: 10.1176/appi.ajp.2020.20111608. PMID: 33384012; PMCID: PMC8163016.
Bhandari R, Paliwal JK, Kuhad A. Neuropsychopathology of Autism Spectrum Disorder: Complex Interplay of Genetic, Epigenetic, and Environmental Factors. Adv Neurobiol. 2020;24:97-141. doi: 10.1007/978-3-030-30402-7_4. PMID: 32006358.