Já foi bem estabelecido que os sintomas da COVID-19 podem permanecer por meses após a infecção, condição chamada de COVID longa ou síndrome pós-COVID. Entretanto, o que ainda não se sabe são os mecanismos responsáveis por essa condição.
Um estudo recente publicado na revista científica Cell traz algumas novas possibilidades para esse contexto, envolvendo a redução da serotonina.
Quais as hipóteses para a Síndrome pós-COVID?
Após uma infecção, alguns indivíduos apresentam síndromes pós-virais, com sintomas que podem persistir por meses a anos após o início da doença. No caso da COVID-19, os sintomas associados são diversos e frequentemente incluem fadiga, mal-estar pós-esforço, perda de memória e outras deficiências neurocognitivas.
A COVID longa representa um desafio global para a saúde, visto que sua fisiopatologia permanece pouco compreendida, deixando os sistemas médicos em todo o mundo despreparados para o grande número de indivíduos desenvolvendo sintomas cardiorrespiratórios, neurocognitivos, gastrointestinais e musculoesqueléticos nos meses e anos seguintes à COVID-19 aguda.
Embora a vacinação possa reduzir o risco de desenvolver essa condição, casos de síndrome pós-COVID continuam a ocorrer, tornando urgente uma compreensão mais profunda da etiopatologia molecular e celular dessa doença.
Várias hipóteses foram formuladas para explicar a etiologia da COVID longa, incluindo:
- Persistência viral;
- Inflamação crônica;
- Hipercoagulabilidade; e
- Disfunção autonômica.
O papel da serotonina na COVID longa
O estudo apresentado na Cell propõe um mecanismo que vincula todas as quatro hipóteses etiológicas em uma única via, fornecendo opções para intervenções terapêuticas. Os pesquisadores encontraram um ponto comum entre essas vias: a redução da serotonina.
A infecção viral e a inflamação impulsionada por interferon tipo I (IFN-1) promovem uma redução da serotonina por meio de três mecanismos:
- Redução da absorção intestinal do precursor da serotonina – triptofano;
- Hiperativação plaquetária e trombocitopenia, que afetam o armazenamento de serotonina; e
- Aumento da degradação da serotonina mediada por MAO (monoamina oxidase).
A redução periférica da serotonina, por sua vez, prejudica a atividade do nervo vago e, assim, causa danos às respostas do hipocampo e perda de memória. Essas hipóteses fornecem uma possível explicação para os sintomas neurocognitivos associados à persistência viral na COVID longa (que podem se estender a outras síndromes pós-virais).
A redução da serotonina pode ser a explicação para os sintomas neurocognitivos na Síndrome pós-COVID.
Os níveis de serotonina são menores na Síndrome pós-COVID
Foi realizada uma investigação metabolômica, constatando que os níveis de serotonina eram diferentes entre os indivíduos recuperados e os pacientes com síndrome pós-COVID.
Além de precursor da serotonina, o triptofano serve também como precursor de muitos outros metabólitos importantes, incluindo niacina, NAD e melatonina. Os pesquisadores sugerem que a captação reduzida dos aminoácidos ocorra em virtude de uma cessação abrupta do metabolismo celular durante a infecção viral. No caso da inflamação viral não resolvente, essa resposta pode persistir e resultar em deficiência de nutrientes.
Uma característica comum tanto na COVID-19 aguda quanto longa é a formação de microtrombos como resultado da hipercoagulabilidade.
Os pesquisadores observaram que a trombocitopenia pode diminuir a capacidade de transporte da circulação sistêmica para a serotonina. O armazenamento reduzido de serotonina, juntamente com a indução de enzimas MAO, pode aumentar a degradação da serotonina e a excreção de seus produtos de degradação. Assim, a hipercoagulabilidade na COVID-19 aguda e longa pode ter implicações além de seus efeitos cardiovasculares.
Com relação ao nervo vago, o estudo indica um papel na mediação do impacto da redução de serotonina no cérebro. Os neurônios sensoriais aferentes podem desempenhar um papel crítico nas manifestações neurocognitivas de infecções virais agudas e pós-agudas.
O nervo vago é um mediador importante do comportamento de doença, responde aos níveis periféricos de serotonina e tem sido implicado na fisiopatologia da síndrome da fadiga crônica. Embora o circuito preciso pelo qual o nervo vago está envolvido no desenvolvimento da COVID longa permaneça incerto, os neurônios sensoriais podem emergir como um elemento importante na transmissão do efeito da inflamação viral periférica para o cérebro.
Quais as aplicações práticas deste estudo?
As descobertas dos pesquisadores indicam possíveis alvos para intervenções clínicas voltadas para a prevenção e tratamento da COVID longa. Os modelos animais demonstram que os níveis de serotonina podem ser restaurados e o comprometimento da memória revertido por meio de suplementação de precursores ou tratamento com ISRSs.
Embora a eficácia desses medicamentos na COVID-19 aguda tenha sido objeto de debate, nenhuma exploração sistemática em indivíduos com COVID longa foi realizada até o momento.
O estudo, juntamente com descobertas recentes que relacionam a depressão ao comprometimento cognitivo na COVID longa e o efeito dos ISRSs na atividade do nervo vago, indica que mais estudos devem ser realizados a respeito do papel da serotonina na prevenção ou tratamento de manifestações neurocognitivas.
Assim como qualquer estudo, há limitações que precisam ser destacadas. O grau de redução de serotonina, por exemplo, é variável. Essa variação é observada nos grupos analisados no estudo, de acordo com o modo de recrutamento, número de sintomas e grau de gravidade da doença. Dessa forma, são necessários estudos com uma amostra maior para confirmar os achados.
—
Referências:
Wong et al. Serotonin reduction in post-acute sequelae of viral infection. 2023, Cell 186, 4851–4867 October 26, 2023. https://doi.org/10.1016/j.cell.2023.09.013