Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a pandemia de COVID-19. O impacto dessa patologia foi sentido de maneira particular nos países tropicais e subtropicais, devido a um outro vírus, o vírus da dengue (DENV).
Devido à quantidade descomunal de internações realizadas por complicações da COVID-19, os hospitais desses países (que, em geral, já possuem uma estrutura debilitada) estavam com sua capacidade lotada. Entretanto, os casos de dengue continuaram a ocorrer, pois são regiões endêmicas. Com isso, o problema se agravou ainda mais.
Assim, devido a esse contexto temeroso, é de extrema importância entender os mecanismos da coinfecção COVID-19 e dengue, e quais são os riscos a que os pacientes estão submetidos. Não considerar os riscos da possível coinfecção pode atrasar o diagnóstico, o manejo clínico, as medidas de prevenção, assim como afetar os níveis individual e comunitário, especialmente em áreas endêmicas.
A coinfecção está correlacionada a sintomas mais graves e prognóstico pior do que as infecções individuais.
Embora os sintomas causados pela dengue e pela COVID-19 sejam muito parecidos (febre, dor de cabeça, náuseas, mialgia, astenia, artralgia e tosse), o vírus causador da doença deve ser corretamente identificado para que o tratamento adequado seja oferecido ao paciente. Além disso, a coinfecção pode piorar o desenvolvimento do quadro clínico, levando a uma taxa de morte mais alta do que essas doenças apresentariam individualmente.
Alguns países possuem um risco maior de coinfecção: 31 casos foram identificados no Brasil, Argentina, Singapura, Tailândia, Maldivas, Paquistão, Bangladesh e uma ilha francesa no Oceano Índico. Entre esses 31 casos, a taxa de mortalidade da coinfecção foi de 16,13%; muito maior do que a taxa de mortalidade apresentada por essas doenças individualmente (a de COVID-19 é de 2,04%).
Embora possuam diferentes mecanismos de ação, SARS-CoV-2 e DENV geram tempestade de citocinas
Embora tanto SARS-CoV-2 quanto DENV sejam vírus de RNA fita simples, eles utilizam diferentes mecanismos para entrar nas células do receptor:
- SARS-CoV-2 possui em sua superfície a glicoproteína Spike, que interage com ACE2;
- DENV necessita da interação com diversos fatores para infectar a célula: lectinas tipo C, receptores de manose, glicosaminoglicanos e proteínas imunomodulatórias.
Ambos os vírus geram uma tempestade de citocinas no organismo. Essas citocinas (como IL-6 e TNF) provocam o extravasamento do plasma, coagulação intravascular disseminada e trombocitopenia. Entretanto, há pequenas diferenças em como o extravasamento de plasma é causado. Por exemplo: SARS-CoV-2 aumenta a produção de citocinas (principalmente IL-6) e gera uma ativação excessiva de linfócito T efetor; enquanto DENV promove uma interação de anticorpos anti-NSP1 com proteínas da superfície celular endotelial.
SARS-CoV-2 e DENV, tanto individualmente quanto em conjunto, provocam danos em diversos órgãos, especialmente pulmões, fígado, sistema cardiovascular e sistema nervoso central (SNC).
No pulmão, a interação entre os vírus pode agravar o dano pulmonar: monócitos infectados por DENV aumentam a secreção de proteínas que alteram a adesão das células epiteliais alveolares (já fragilizadas pela replicação do SARS-CoV-2), prejudicando sua função de barreira.
Ainda, mencionamos que o vírus da dengue gera uma tempestade de citocinas, que promove um distúrbio no organismo e altera a integridade da unidade neurovascular, permitindo que DENV acesse o SNC através da barreira hematoencefálica. Assim são causados os sintomas neurológicos da dengue, como encefalite e encefalopatia (associados à doença severa com recuperação mais lenta). A COVID-19 também causa sintomas neurológicos: dor de cabeça, tontura, epilepsia, ataxia e anosmia. Portanto, a coinfecção por esses vírus pode causar complicações neurológicas severas.
Quais são os biomarcadores presentes na coinfecção? Como realizar o diagnóstico?
Os biomarcadores indicam o processo e progresso da patogênese, além de demonstrar os resultados das intervenções terapêuticas.
Embora alguns sintomas estejam presentes em ambas as doenças, conseguimos observar algumas diferença (p.ex. vômito, dor retro-orbital e erupções cutâneas são sintomas mais particulares à dengue). Entretanto, além da análise clínica, os exames laboratoriais são essenciais para diferenciação do diagnóstico.
No caso da COVID-19, o exame de biologia molecular RT-PCR confirma o diagnóstico, sendo que a tentativa de diagnóstico clínico envolve monitorar as síndromes respiratórias típicas com exposição recente. Além disso, também pode ser realizada uma tomografia computadorizada do peito para auxiliar na investigação.
Para o diagnóstico da dengue, os testes mais utilizados são ELISA e detecção do antígeno NSP1, além de RT-PCR e isolamento do vírus.
Para identificar uma coinfecção, os exames de hemograma e ALT podem ser úteis, com testes laboratoriais comuns auxiliando na diferenciação através da análise dos biomarcadores. Em quase todos os casos de coinfecção é observada a trombocitopenia, devido a uma supressão da medula óssea pelos vírus e eliminação das plaquetas mediada por autoanticorpos e complexos imunes.
Como tratar os casos de coinfecção?
Primeiramente, deve-se observar que há maior probabilidade de casos de coinfecção ocorrerem nos meses mais chuvosos, pois há aumento dos casos de transmissão de dengue. Essa observação já pode auxiliar no diagnóstico.
O procedimento ideal seria a realização da quarentena em indivíduos suspeitos enquanto se aguarda o resultado dos testes laboratoriais. Também é importante apontar que a COVID-19 deveria ser considerada como diagnóstico diferencial em indivíduos com febre em regiões tropicais e subtropicais, mesmo na ausência de sintomas respiratórios, histórico de exposição ou viagem.
Uma das dificuldades observadas é a coexistência de febre após vacinação contra SARS-CoV-2 e a ocorrência de dengue. Ou seja, a febre apresentada por um indivíduo recentemente vacinado pode ser considerada um efeito adverso da vacina, enquanto na realidade é um sintoma de dengue.
Os pacientes diagnosticados com a coinfecção por SARS-CoV-2 e DENV devem ser monitorados constantemente. O ideal seria que esse acompanhamento fosse feito em hospitais, pois o quadro pode evoluir para um estágio severo rapidamente.
O tratamento deve se basear nos sintomas, sendo que em casos mais graves podem ser necessários intubação e ventilação mecânica. Devem ser oferecidas medidas de suporte, com administração de fluidos para hidratação e antitérmicos/analgésicos sintomáticos.
Conclusões e recomendações
A coinfecção por SARS-CoV-2 e DENV constitui uma ameaça séria à saúde do paciente, pois causa prejuízos a diferentes sistemas: respiratório, cardiovascular, nervoso central, renal e hepático.
Devido à semelhança entre os sintomas e biomarcadores, pode ocorrer de o diagnóstico correto não ser realizado e apenas uma doença ser tratada. Os biomarcadores contrastantes devem ser considerados para suspeitar, testar e tratar as duas infecções.
Dessa maneira, deve-se testar para DENV e para SARS-CoV-2 os pacientes com COVID-19 e que apresentam sintomas de dengue e vice-versa.
É dever das autoridades da cidade e do departamento de saúde realizar medidas para controlar o vetor Aedes aegypti e alertar a população. As precauções contra COVID-19 também devem ser tomadas, como higiene pessoal e distanciamento social.
Os profissionais da saúde de todos os níveis devem estar cientes da complexidade da coinfecção, tendo sempre em mente a vigilância e medidas preventivas.
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Referências:
PRAPTY, C. N. B. S. et al. SARS‐CoV‐2 and dengue virus co‐infection: Epidemiology, pathogenesis, diagnosis, treatment, and management. Rev Med Virol, v. 2340, 2023. doi: 10.1002/rmv.2340.