Você dorme bem?
O sono ininterrupto é considerado importante para processos restauradores e desempenho no dia seguinte. O sono fragmentado prejudica a consolidação da memória, enquanto o NREM e REM a promovem.
Porém, despertares transitórios (“microdespertares”) são cada vez mais reconhecidos como um componente intrínseco da microarquitetura normal do sono. Mas a relação entre estes episódios transitórios e os aspectos de memória permanecia incerta na literatura.
Um grupo de pesquisadores publicou um trabalho na revista Nature Neuroscience em julho deste ano, no qual estavam investigando o papel da norepinefrina na microarquitetura no sono.
Eles viram que a amplitude das oscilações da norepinefrina é elemento crucial para moldar os padrões do sono, e está intimamente relacionada ao desempenho da memória.
Microdespertar e o processo de consolidação da memória
Os traços de memória envolvem mudanças em vários níveis de organização neural, sinapses e conjuntos neuronais. A consolidação de memória diz respeito a permitir que esse traço instável se torne resistente à degradação – por estabilização, reforço e integração.
Tais mecanismos de consolidação ainda são questões de debate na área acadêmica e médica, mas a qualidade do sono é sem dúvidas foco da maioria dos trabalhos.
Nesse estudo mais recente publicado na Nature Neuroscience, os autores propõem a relação entre oscilações de norepinefrina, liberada pelo locus coeruleus (LC), os microdespertares, e a consolidação de memória.
Primeiro resultado – padrão de microdespertar
Os pesquisadores viram que a amplitude de variação da norepinefrina é diferente em sono NREM e sono REM, sendo maior no primeiro. No sono REM, parece que o neurotransmissor reduz de forma contínua e lenta. Já no NREM, há rajadas de atividade no LC – com uma periodicidade de cerca de 30 segundos.
As subidas oscilatórias norepinefrina durante o sono NREM foram subdivididas em vigília ou microdespertares, e conduzem um padrão cíclico durante o sono.
É como se o neurotransmissor tivesse atingido um pico, e um vale, durante o NREM. No vale, não há estimulação e o indivíduo está adormecido, e no vale há excitação e probabilidade de despertar. Quanto maior a oscilação, maior a chance de notarmos essa excitação, e acordamos durante a noite.
Indução de maior amplitude potencializa aquisição de memória
Esses resultados de amplitude foram importantes para o próximo passo. Os pesquisadores induziram experimentalmente o aumento de amplitude de variação de norepinefrina, disparada pelo LC, buscando avaliar os efeitos de aquisição de memória.
Ou seja, o neurotransmissor que era liberado em média a cada 30 segundos passou a ser liberado a cada ~65 segundos. É como se tivessem induzido um “vale profundo”.
É nesse período que a atividade cerebral foi associada a consolidação de memória.
O grupo observou isso em modelos animais, submetidos à tarefa de reconhecimento de novos objetos e depois colocados para dormir. A indução realizada aumentou a preferência para os novos objetos em comparação com os controles.
O contrário também foi visto. Animais que tiveram a inibição do tempo de vale (para só 2 segundos) tiveram sono mais fragmentado, e não demonstraram muito interesse pelos objetos novos, apenas pelos que já eram familiares.
E como isso foi visto associado aos microdespertares?
Como mencionamos, quanto maior a onda, maior a chance de o indivíduo lembrar que despertou durante o sono. Logo, esse “vale profundo” aumentou o número de microdespertares, por mais excitação por norepinefrina.
A amplitude de oscilação da norepinefrina durante o sono determina a qualidade restauradora da memória do sono. Logo, reduzir ou aumentar sua amplitude oscilatória compromete ou melhora o desempenho da memória.
É claro que vários sistemas de promoção de excitação são interconectados no cérebro, e o grupo estudou apenas um deles. Mas ainda assim, revela um novo mecanismo por trás de microdespertares e que ocorre espontaneamente durante o sono, indicando sua natureza cíclica de ativação. Ou seja, não acordamos aleatoriamente durante a noite!
Em resumo, os dados encontrados confirmam o papel fundamental das oscilações de norepinefrina na formação da microarquitetura do sono, e o quanto isso é importante para a consolidação da memória.
A partir de agora, quando despertarmos durante a noite, talvez possamos visualizar a situação por outro ângulo.
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Referências:
Kjaerby, C., Andersen, M., Hauglund, N. et al. Memory-enhancing properties of sleep depend on the oscillatory amplitude of norepinephrine. Nat Neurosci 25, 1059–1070 (2022). https://doi.org/10.1038/s41593-022-01102-9
Gina Loveless. Acordar à noite pode ser um sinal de consolidação da memória. 19 de agosto de 2022. Medscape. https://portugues.medscape.com/verartigo/6508415