Recentemente, um grupo de pesquisadores da University of California identificou os distúrbios do sono e a interrupção do ritmo circadiano como sendo o fator comum biológico presente na maioria dos transtornos de saúde mental, incluindo transtornos mentais relacionados ao desenvolvimento neurológico e ao envelhecimento.
A regulação do ritmo circadiano é essencial para a sobrevivência
Os ritmos circadianos são gerados através de padrões oscilantes de atividade fisiológica e associam a funcionalidade biológica do indivíduo ao ciclo claro-escuro de 24 h, mediados pela sensibilidade intrínseca à luz.
Os sinais gerados pelo ciclo claro-escuro iniciam cascatas de sinalização internas. No entanto, devido ao envolvimento de uma ampla gama de cascatas de sinalização e seus respectivos componentes, existem muitos pontos ao longo dessa via de transdução, nos quais os sinais podem ser interrompidos ou alterados, levando à desfechos indesejados.
Embora até pouco tempo tenham ganhado pouca atenção, os ritmos circadianos passaram a receber certo destaque na neurociência e psiquiatria por sua importância biológica. Os ciclos de sono-vigília, produção e liberação hormonal e controle da temperatura corporal são processos altamente regulados sob o rígido controle do ritmo circadiano. A sincronização do ritmo biológico com o ciclo claro-escuro de 24 horas é mediada pela sensibilidade à luz, que acopla estas funções biológicas a diferentes fases do dia.
E esta função não é só importante em humanos. Por ser essencial para a sobrevivência, o sistema circadiano responsável pela manutenção do tempo e capaz de operar os mecanismos endógenos do indivíduo permaneceu altamente conservada na maioria dos organismos vivos.
Consequentemente, a ritmicidade circadiana normal desempenha um papel crítico no neurodesenvolvimento e na função cognitiva de maneiras dependentes de sexo e idade, influenciados por sinais hormonais.
Desta forma, não surpresa que a dessincronização do ritmo circadiano pode impactar negativamente no desenvolvimento neurológico, influenciando no surgimento ou progressão de transtornos do neurodesenvolvimento, transtornos psiquiátricos da adolescência e meia-idade e distúrbios neurodegenerativos relacionados ao envelhecimento.
Um exemplo bem claro disso é a condição conhecida como psicose da síndrome dos cuidados intensivos (ICS), a qual pacientes apresentam mudanças comportamentais extremas e redução da função cognitiva após internação em unidades de terapia intensiva (UTI). Talvez não por acaso, estes casos se apresentam aumentados em pacientes que foram mantidos isolados dos outros e, muitas vezes, em quartos sem janelas ou com pouca exposição a fontes naturais de luz.
Neurodesenvolvimento associado ao ritmo circadiano
Os distúrbios do neurodesenvolvimento abrangem um grupo de desordens de saúde mental caracterizados pela interrupção do desenvolvimento cerebral típico e envolvem sobreposições genéticas que sugerem semelhanças entre eles.
A hereditariedade nessas condições sugere uma ligação genética comum. No entanto, há uma expressividade genética variável. Isso significa que a expressão fenotípica destes transtornos depende de efeitos abrangentes, por mutações únicas e interações epistáticas entre os genes afetados (quando um gene interfere na ação do outro).
Assim, a interrupção do ritmo circadiano pode afetar essas interações, de modo que os resultados observados para indivíduos com genótipos semelhantes são altamente dinâmicos.
Segundos os autores do trabalho, publicado na revista Nature em julho desse ano, existe uma ligação robusta entre a interrupção do ritmo circadiano durante a gravidez, induzida por estressores maternos, e o desenvolvimento de distúrbios do neurodesenvolvimento, podendo levar ao comportamentos de evitação social e hiperatividade na idade adulta.
Como consequência do estresse materno e das perturbações do ritmo circadiano associadas, as crianças correm maior risco de desenvolver transtornos do neurodesenvolvimento e desenvolver perturbações do ritmo circadiano quando adultos.
De fato, a prevalência de interrupções do sono para pacientes com distúrbios do neurodesenvolvimento é alta: 60% dos pacientes com Síndrome de Tourette, 70% dos pacientes com transtorno de deficiência de atenção e hiperatividade e 80% com transtorno do espectro autista relatam distúrbios do sono.
Embora manifestados por fenótipos comportamentais aparentemente distintos, os sintomas podem se sobrepor em vários distúrbios de saúde mental. Apesar da exposição à luz e a qualidade do sono desempenharem papéis significativos no estabelecimento de comportamentos de vigília, parece haver uma correlação entre indivíduos que preferem se manter acordados durante a noite com resultados psicológicos adversos, incluindo sintomas depressivos e de ansiedade e desregulação comportamental.
Já na velhice, a diminuição da duração do sono e/ou fragmentação e alterações circadianas são frequentemente observadas na doença de Alzheimer precoce.
As concentrações de Aβ mostram uma flutuação diurna em humanos, aumentando durante o dia e diminuindo à noite. Portanto, os distúrbios do sono podem prejudicar a remoção de resíduos neurotóxicos acumulados durante o período de vigília, como Aβ do cérebro.
Além disso, a fragmentação do sono parece aumentar a incidência de doença de Alzheimer e declínio cognitivo em adultos, associado ao acúmulo de Aβ. Isso diminui a qualidade dos estados de vigília/sono e pode afetar a memória dependente do hipocampo, resultando em comprometimento progressivo da memória.
Ter qualidade de sono é essencial em qualquer fase da vida!
A natureza sobreposta de características em vários transtornos de saúde mental sugere a existência de fatores psicopatológicos comuns que medeiam apresentações fenotípicas semelhantes em transtornos distintos.
Desta forma, algumas linhas de raciocínio acreditam que cada um dos transtornos de saúde mental pode predispor o paciente aos demais. Achar esse fator comum poderia auxiliar no entendimento de manifestações como ansiedade, autismo e esquizofrenia.
Novos estudos mostraram uma associação entre a disrupção do ritmo circadiano e o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos em todas as fases de vida dos pacientes, podendo então o ritmo circadiano ser um fator comum a todos estes transtornos.
Perturbações neste ciclo durante o início da vida (ou durante a gestação) podem ter efeitos comportamentais de longa duração nos descendentes; podem aumentar o risco de desenvolvimento destes distúrbios durante a adolescência e início da fase adulta; e podem acelerar o processo de neuro degeneração em pacientes idosos.
Ainda, o trabalho desenvolvido pelo grupo da University of California generalizada a interrupção do ritmo circadiano como fator como para outros transtornos de saúde mental, como transtorno obsessivo-compulsivo, transtornos alimentares como anorexia nervosa, bulimia nervosa e dependência alimentar e Doença de Parkinson. Apesar disso, outros fatores comuns também podem estar envolvidos, como nutrição e metabolismo celular.
Ainda que as conclusões do trabalho tenham sido baseadas em resultados de diversos estudos, pesquisas futuras devem ser conduzidas para verificar as hipóteses levantadas.
Dica WeMEDS®: como os ritmos circadianos são intrinsecamente sensíveis a sinais claro-escuro, eles podem ser facilmente interrompidos por exposições à luz artificial à noite. Por isso, evite manusear aparelhos que emitam luz, como celular, antes de dormir e dê preferência para quartos escuros.
Durma bem!
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Referências:
Alachkar, A., Lee, J., Asthana, K. et al. The hidden link between circadian entropy and mental health disorders. Transl Psychiatry 12, 281 (2022). https://doi.org/10.1038/s41398-022-02028-3
Circadian Rhythm Disruption Found to Be Common Among Mental Health Disorders. Source: UC Irvine. September 2, 2022. https://neurosciencenews.com/circadian-rhythm-mental-health-21347/
