Em 21 de julho, saiu na revista Science um comunicado que chocou a comunidade médica e científica. Um investigador de imagens da neurociência encontrou sinais de manipulação em dezenas de artigos relacionados a Doença de Alzheimer, ameaçando uma teoria central da doença.
Investigação em andamento desde 2021
O neurocientista e médico Matthew Schrag da Universidade Vanderbilt já investiga possíveis condutas não científicas relacionadas a Doença de Alzheimer (DA) desde 2021. Em agosto (2021), o pesquisador já havia solicitado à Food and Drug Administration (FDA) que interrompesse dois ensaios clínicos de fase 3 com o medicamento Simufilam.
O simufilam (anteriormente conhecido como PTI-125) é um medicamento experimental, estudado pela Cassava Sciences, que representa uma abordagem totalmente nova para tratar Alzheimer. O objetivo é restaurar a forma e a função da proteína filamina A alterada no cérebro dos pacientes. Além disso, a equipe comenta que o medicamento pode alterar a resistência à insulina, e relaciona esses achados a DA.
O Dr. Schrag apresentou relatórios incluindo imagens científicas possivelmente manipuladas e dados numéricos suspeitos, e acrescenta que não conseguiu encontrar evidências de que outros investigadores já tenham replicado os achados encontrados pela Cassava Sciences – especialmente quanto a resistência insulínica.
Após diversas contestações e recusas de contato, Dr. Schrag entrou em contatos com a maioria dos periódicos que publicaram artigos questionados, e sete foram retirados de circulação.
Diversos outros trabalhos foram questionados pelo médico, e a história completa pode ser acessada aqui. Vamos dar foco ao que pode ser a descoberta mais impactante até agora.
A hipótese amiloide está sendo questionada?
Alois Alzheimer viu pela primeira vez em 1906 placas e outros depósitos de proteínas no cérebro de um paciente falecido com demência. Em 1984, a amiloide-β (Aβ) foi identificada como principal componente destas placas.
Em 1991, os pesquisadores rastrearam a DA ligada à família a mutações no gene de uma proteína precursora da qual deriva a amiloide. Logo, para muitos cientistas, parecia claro que o acúmulo de Aβ desencadeia uma cascata de danos e disfunções nos neurônios, causando demência. E nesse sentido, a interrupção dos depósitos de amiloide tornou-se a estratégia terapêutica mais plausível.
Em meados da década de 1990, uma pesquisadora criou um camundongo transgênico que produz Aβ humano, que forma placas no cérebro do animal. O rato também apresenta sintomas semelhantes aos da demência, tornando-se assim o modelo favorito de estudos em Alzheimer.
No início dos anos 2000, “oligômeros tóxicos”, subtipos de Aβ que se dissolvem em alguns fluidos corporais, também ganharam popularidade como o provável principal culpado pela DA. Estes oligômeros foram associados a comunicação prejudicada entre neurônios in vitro e em animais, e autópsias mostraram níveis mais altos de oligômeros em pacientes do que em indivíduos cognitivamente saudáveis.
Em 2006, um trabalho de grande relevância foi publicado na revista Nature: “A specific amyloid-β protein assembly in the brain impairs memory”.
Nesse trabalho, os pesquisadores sustentam a hipótese amiloide, na qual aglomerados de placas amiloide-β no tecido cerebral são a principal causa da Doença de Alzheimer. No entanto, propõem um oligômero específico, anteriormente desconhecido, apelidado de Aβ*56.
O grupo isolou Aβ*56 e o injetou em ratos jovens. A capacidade dos ratos de recordar informações simples e previamente aprendidas – como a localização de uma plataforma escondida em um labirinto – despencou.
Ou seja, Aβ*56 é o subtipo principal responsável pela DA! Esse é o trabalho mais citado relacionado a DA – com mais de 2300 citações.
Em uma pesquisa por manipulações em artigos, o tema Alzheimer e algumas postagens em jornais de neurociência chamaram a atenção do Dr. Schrag. Utilizando seu conhecimento médico e técnico para avaliar as imagens publicadas, outros artigos do autor principal do trabalho com a Aβ*56 (Dr. Lesné) apareceram. E isso despertou seu interesse para aprofundar a investigação!
Uma investigação de 6 meses da Science forneceu forte apoio às suspeitas do Dr. Schrag e levantou questões sobre a pesquisa. Diversos pesquisadores foram convidados para revisar as análises, e concordaram com as conclusões gerais, que lançaram dúvidas sobre centenas de imagens.
Alguns especialistas suspeitam que o mesmo grupo de pesquisa (o que propôs a hipótese em 2006) tenha essa conduta em estudos com DA há mais de 15 anos, pois as análises incluíram mais de 70 publicações do mesmo grupo.
Em alguns casos, há comentários sobre as imagens que “parecem exemplos descarados de adulteração de imagens”, segundo a Science. Os autores pareciam ter composto figuras juntando partes de fotos de diferentes experimentos.
O que foi visto e questionado no trabalho com a Aβ*56?
No artigo comentado da Science é possível conferir as imagens propostas pelo Dr. Schrag (aqui).
A imagem do Western blot (técnica que separa proteínas por peso molecular através de uma eletroforese) mostrava marcas de corte, sugerindo adulteração imprópria com bandas retratando Aβ*56 e outras proteínas.
Algumas bandas (marcas das proteínas no gel) pareciam anormalmente semelhantes, uma aparente manipulação que em alguns casos poderia ter feito Aβ*56 parecer mais abundante do que era.
Foi sugerido também que houve alteração de contraste e coloração para alinhar melhor e facilitar a visualização das bandas de proteínas e combinar seu tamanho e orientação no gel. Além disso, por cálculo de correlação e similaridade, a disposição apresentada na imagem seria altamente improvável ocorrer ao acaso.
Ao todo, 20 trabalhos do mesmo autor (Dr. Lesné) foram minuciosamente revisados, e dez deles incluem a Aβ*56. Dr. Schrag entrou em contato com várias das revistas a partir do início deste ano, e Dr. Lesné e seus colaboradores publicaram recentemente duas correções, relatando que as versões anteriores das imagens haviam sido “processadas de forma inadequada”.
Os achados são uma fraude?
Na ciência, uma vez que você publica seus dados, se eles não forem prontamente replicados, há uma preocupação real de que não sejam corretos ou verdadeiros. Nesse sentido, há poucas evidências claras de que Aβ*56 existe, ou correlaciona-se de forma reproduzível com as características da doença de Alzheimer.
No entanto, o pesquisador investigador Matthew Schrag prefere não falar sobre “fraude”, pois isso exigiria acesso a imagens originais, completas e inéditas e, em alguns casos, a dados numéricos brutos. Segundo ele, o foco é “no que podemos ver nas imagens publicadas (…) como bandeiras vermelhas, não conclusões finais”.
Atualmente, no artigo original de 2006 há uma nota do editor recomendando cautela:
“Os editores da Nature foram alertados para preocupações em relação a algumas das figuras deste artigo. A Nature está investigando essas preocupações, e uma nova resposta editorial seguirá o mais rápido possível. Enquanto isso, os leitores são aconselhados a ter cuidado ao usar os resultados relatados nele.”
Segundo Thomas Südhof, neurocientista especialista em Alzheimer da Universidade de Stanford e ganhador do Prêmio Nobel, “de imediato, é óbvio o desperdício de financiamento do NIH e de pensamento no campo, porque as pessoas estão usando esses resultados como ponto de partida para seus próprios experimentos.”
Vamos aguardar os novos capítulos dessa história.
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Referências:
Charles Piller. BLOTS ON A FIELD? A neuroscience image sleuth finds signs of fabrication in scores of Alzheimer’s articles, threatening a reigning theory of the disease. Science News. V.377. July 21, 2022. https://www.science.org/content/article/potential-fabrication-research-images-threatens-key-theory-alzheimers-disease
Charles Piller. Research backing experimental Alzheimer’s drug was first target of suspicion. Science. V.377. July 21, 2022. https://www.science.org/doi/10.1126/science.ade0181
Artigo de 2006, em processo de avaliação pela Nature: Lesné, S., Koh, M., Kotilinek, L. et al. A specific amyloid-β protein assembly in the brain impairs memory. Nature 440, 352–357 (2006). https://doi.org/10.1038/nature04533
Isso é incrível. Se for verdade, coisa que não dúvido, até onde vai o ser humano para conseguir ascensão na vida. A ciência, que era considerada um dos últimos bastião da verdade, agora está sofrendo com as fake-science.
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