Apesar de os efeitos de curto prazo do uso da Cannabis já serem bem conhecidos, seus impactos a longo prazo ainda são incertos. Nesse sentido, um estudo recente publicado na revista JAMA buscou avaliar os impactos do uso de Cannabis nas funções cognitivas – tanto do uso recente quanto do uso prolongado.
O que já sabemos sobre os efeitos negativos da Cannabis?
À medida que mais países legalizaram a produção e a venda de cannabis para uso recreativo e médico, houve um aumento associado na potência dos produtos de cannabis, nas taxas de uso e na prevalência de transtorno por uso de cannabis.
A maior acessibilidade também foi associada a maiores taxas de acidentes de veículos motorizados relacionados à cannabis, sendo que o uso frequente está associado ao aumento do risco de síndrome de hiperêmese e doenças cardiovasculares.
Dentre os efeitos negativos da Cannabis já conhecidos, inclui-se:
– Reduções no desempenho cognitivo (como memória verbal episódica) – mas essas reduções podem não persistir após 72 horas de abstinência;
– Interrupção do sistema canabinoide endógeno pelo tetrahidrocanabinol (THC), o que pode alterar regiões do cérebro ricas em receptores canabinoides 1 (CB1) – já há evidências de que o uso de cannabis entre adolescentes está negativamente associado à espessura do córtex pré-frontal esquerdo (PFC) e do PFC direito;
– Maior densidade de conectividade funcional no estriado ventral, sendo que os efeitos foram mais pronunciados em indivíduos que começaram a usar cannabis mais cedo na vida;
– Redução da ativação neural relacionada à memória, função executiva, emoção, processamento de recompensas e processamento social – entretanto, a maioria dos estudos que observaram esses resultados teve menos de 30 participantes.
Apesar desses efeitos negativos da Cannabis, há uma percepção crescente de que a cannabis é inofensiva. Além disso, apesar de os efeitos a curto prazo serem bem conhecidos, ainda não sabemos as consequências de um uso que acompanhe a longevidade do indivíduo.
Impactos do uso de Cannabis a curto e longo prazo: entenda como o estudo foi realizado
No artigo publicado esse ano na revista JAMA Network, 1005 adultos com idades entre 22 e 37 anos participaram do estudo, sendo que a avaliação do uso recente de Cannabis foi realizada por amostras de urina.
A avaliação do uso ao longo da vida foi feita por uma entrevista que avalia o número total de usos de cannabis ao longo da vida. A intensidade do uso foi definida em 3 níveis:
– Não usuários: uso em 10 ou menos vezes;
– Moderados: 11 a 999 vezes;
– Pesados: 1000 ou mais vezes.
A resposta neural foi avaliada de acordo com os seguintes parâmetros: emoção, recompensa, função motora, memória de trabalho, linguagem, raciocínio relacional ou lógico, teoria da mente ou processamento de informações sociais.
O estudo indicou que usuários pesados ao longo da vida têm mais probabilidade de ter as seguintes características: sexo masculino, renda mais baixa e níveis mais baixos de educação.
Uso de Cannabis e redução de memória de trabalho, memória verbal episódica e na teoria da mente
Como efeito a longo prazo da Cannabis, foi vista associação entre o uso de cannabis ao longo da vida e redução da memória de trabalho.
Com relação ao uso recente de cannabis, foi encontrada uma associação com um desempenho mais baixo na memória de trabalho, na memória verbal episódica e na teoria da mente.
Com relação ao sexo, foi observado que os homens possuem níveis de ativação motora mais baixos em caso de resultado positivo de THC.
Impactos do uso de Cannabis na prática clínica
Redução da memória de trabalho em indivíduos com uso pesado ao longo da vida.
Essa redução de ativação foi mais pronunciada no PFC dorsolateral, PFC dorsomedial e ínsula anterior. Essas regiões têm uma densidade alta de receptores CB1, sendo que a disponibilidade do receptor reduz com a exposição diária à cannabis. Ou seja, há evidências de que o uso pesado de cannabis pode causar adaptação neural.
Além disso, sabe-se que o uso pesado de cannabis altera a ativação cerebral mesmo na ausência de uso recente: estudos sugerem que os efeitos cognitivos residuais da cannabis podem permanecer por 2 a 4 semanas após a abstinência.
Ou seja, é necessário montar uma estratégia caso o usuário deseje praticar abstinência para apresentar uma melhor performance cognitiva. Os sintomas de abstinência também devem ser levados em consideração – estes podem durar uma semana ou mais após a cessação.
Há uma evidente necessidade de educar os usuários de cannabis sobre as consequências do uso recente e pesado de cannabis ao longo da vida em relação à memória de trabalho. Da mesma forma, a associação entre uso pesado e função cerebral diminuída pode motivar usuários regulares de cannabis a reduzir seu uso e buscar tratamento.
O uso recente de cannabis foi associado à diminuição da precisão comportamental na teoria da mente
Alguns autores sugerem que esse fato poderia contribuir para o aumento do risco de esquizofrenia – condição associada a déficits profundos nos processos de teoria da mente.
Os déficits no processamento relacionado à teoria da mente e no processamento da memória de trabalho sugerem que a exposição ao THC pode afetar mecanismos neurais sobrepostos com o poder de contribuir para associações observadas entre THC e psicopatologia.
A redução da ativação neural relaciona-se com o surgimento de psicoses agudas observadas durante a intoxicação por THC – particularmente para altas doses.
Impactos do uso de Cannabis entre os sexos
Para a tarefa motora, houve uma interação significativa do sexo com a ativação cerebral, de modo que apenas os homens mostraram uma redução da ativação neural. Há poucos estudos que avaliam as diferenças entre os sexos na resposta a cannabis. Entretanto, entre as pesquisas realizadas, a maioria observa um efeito maior da cannabis nas mulheres do que nos homens:
– Redução do volume do córtex orbitofrontal e cerebelar;
– Mulheres usuárias pesadas de cannabis apresentam uma resposta neural reduzida a um
desafio estimulante.
Limitações
O estudo que avaliou os efeitos negativos da Cannabis apresenta limitações principalmente quanto à faixa etária: os participantes eram adultos jovens, então essas descobertas podem não ser generalizadas para outras faixas etárias. Além disso, não havia dados sobre a dose típica de THC, potência, constituintes adicionais e via de administração.
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Referências:
GOWIN, J. L. et al. Brain Function Outcomes of Recent and Lifetime Cannabis Use. JAMA Network Open. 2025;8(1):e2457069. doi:10.1001/jamanetworkopen.2024.57069.
