Luta antimanicomial – “Holocausto brasileiro. Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do país.”

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Introdução

“O fato é que a história do Colônia é a nossa história. Ela representa a vergonha da omissão coletiva que faz mais e mais vítimas no Brasil. (…) Enquanto o silêncio acobertar a indiferença, a sociedade continuará avançando em direção ao passado de barbárie.”

Esse trecho poderia ser sobre muitas pautas que precisamos discutir atualmente como brasileiros.

Poderia ser sobre racismo, machismo, homofobia, desigualdades sociais, ideais da ditadura militar. Mas estamos falando sobre a situação manicomial do Brasil que por vezes parece estar tão distante no tempo e espaço, mas que na realidade está batendo em nossa porta constantemente e que acaba envolvendo todos os tópicos acima.

O livro

O fragmento acima mencionado foi retirado do livro “Holocausto brasileiro. Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do país” da jornalista Daniela Arbex e publicado em 2013. A leitura desse livro já foi sugerida por nós no texto publicado no portal WeMeds em 6 de dezembro.

É importante já começarmos dizendo: não pense que a leitura deste livro será fácil! E arriscamos em dizer: nem mesmo desse resumo! Está longe de ser uma leitura palatável, mas entenda como essencial. Especialmente para profissionais da saúde.

Este livro conta a história do Hospital Colônia, localizado em Barbacena – MG, fundado em 1903 e fechado na década de 80.

Durante as primeiras décadas do século XX, foi considerado referência nacional quando se tratava de Psiquiatria. Sendo assim, esse livro não conta só a história de um hospital no interior de Minas Gerais, mas também nos dá um vislumbre da história da sociedade e do desenvolvimento da psicologia e psiquiatria no último século.

Através das palavras da jornalista Daniela Arbex esse livro nos traz histórias impactantes, tanto individuais, quanto coletivas acerca das pessoas que foram internadas no Colônia ao longo de seus aproximados 80 anos de existência.

A princípio, com o objetivo de tratar pessoas com transtornos mentais, o Hospital Colônia acabou recebendo um espectro muito maior de indivíduos. Muitas pessoas que não correspondiam aos padrões normativos da sociedade foram institucionalizadas no Colônia.

A maioria dos internos do Hospital Colônia não tinha transtorno mental. O hospital e a psiquiatria foram usados como subterfúgios para excluir da sociedade os tipos “indesejados”. E a lista de pessoas “inconvenientes” e que mereciam “tratamento” era bem extensa.

Mulheres que não queriam se casar e eram consideradas loucas; indigentes; pessoas vítimas de estupro; desafetos políticos; amantes de pessoas poderosas; disléxicos; prostitutas; homossexuais; alcoólatras; crianças indesejadas; pessoas em condição de rua ou sem documentação; pessoas com depressão leve; feministas; mulheres grávidas que deveriam esconder a gravidez; esposas que não se adequavam às regras do marido; pessoas com déficits cognitivos; portadores de síndrome de Down; autistas; enfim, qualquer um que não se enquadrasse no padrão normativo da sociedade.

No livro fica claro que essas pessoas eram internadas compulsoriamente e sem critério algum, apartadas e esquecidas pela sociedade no interior do manicômio. E ao longo do livro, podemos notar que a estratégia de tratamento utilizada não utilizava apenas a exclusão e o encarceramento

Os direitos e garantias individuais de cada um foram retirados. A individualidade desaparecia. Lá, os pacientes eram apenas mais um interno do Hospital Colônia e sobreviviam sob condições sub-humanas.

Inclusive, é difícil usar o termo paciente para nos referirmos a essas pessoas, apesar de na época serem nomeados assim. Esse termo não faz jus ao sofrimento que passaram. Essa não é a história de pacientes internados em um hospital. É uma história de exclusão, condições sub-humanas e maus tratos.

Como relatado no livro, a princípio o Hospital contava com aproximadamente 200 leitos, mas em seu auge, por volta da década de 50-60, mais de 5 mil pessoas viviam lá.

E obviamente, não havia estrutura física, nutricional e de pessoas capacitadas para lidar com todas essas pessoas internadas. O resultado disso é bastante previsível. Muitos internos definharam por desnutrição.

Outros morreram de frio, uma vez que não havia cobertores e nem roupas suficientes para todos. Durante o inverno, o clima de Barbacena é bastante severo, muitos perambulavam completamente nus ou semi-nus, dormiam ao relento no pátio e não contavam com nenhuma assistência nesse aspecto.

A saída encontrada pela maioria foi dormir de forma aglomerada, uns em cima dos outros. Segundo relatado, em uma determinada madrugada, 17 pessoas morreram de frio.

Durante boa parte da existência do Colônia não havia água encanada. E com a superlotação, as pessoas se viravam como podiam, ingeriam urina e fezes, matavam a sede e se banhavam com a água do esgoto que passava pelo pátio.

Devido à grande demanda de trabalho e descaso dos funcionários da instituição, alguns internos faleciam nos pátios e, por vezes, seus corpos ficavam lá. Expostos às condições climáticas, se decompondo em frente aos outros moradores do Colônia. Sem banho, alimento, higiene e cuidados, as pessoas eram largadas à própria sorte.

Uma imagem que ficou bastante emblemática e que ilustra essa situação é a fotografia do menino Silvio Savat, confundido com um cadáver devido o seu estado nutricional e por estar recoberto de moscas.

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Nessa segunda foto, Silvio já adulto.
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A primeira foto mostra Silvio Savat em condições sub-humanas quando interno do Hospital.

Além das condições sub-humanas as quais eram submetidas, as pessoas internadas no Hospital Colônia também sofriam estupros, tratamentos experimentais, torturas físicas e mentais.

Tratamentos eletroconvulsivos e banhos gelados, foram muitas vezes utilizados como forma de subjugar, punir e controlar os que davam mais trabalho, sempre sob a justificativa: “fazemos isso porque é o tratamento”.

Estima-se que durante o funcionamento do Hospital Colônia 60 mil pessoas morreram.

De acordo com o relatado no livro, devido ao grande volume de óbitos, os cemitérios da região já não mais conseguiam dar conta (e convenhamos, também não era vantajoso ou interessante lidar com os corpos dessas pessoas). Portanto, muitos corpos foram dissolvidos em ácido dentro da instituição ou então vendidos ilegalmente para laboratórios de anatomia e universidades de medicina.

Calcula-se que quase 2 mil corpos e ossadas foram traficados dessa maneira. E como o sistema de necropolítica fomentava esse tipo de instituição e negociação, muitos enriqueceram com esse esquema.

Após o fechamento do Hospital Colônia na década de 80, os internos restantes foram encaminhados para locais com melhores condições sanitárias e de moradia, onde puderam conviver, ainda em conjunto, e com o apoio do Estado.

Nossa análise e motivos para ler

Nossa, mas essa história é pesada demais, por que iria querer ler algo assim?

Como profissionais da saúde temos a responsabilidade de compreender melhor o sistema ao qual estamos inseridos, aprender com os erros do passado e sempre pensar na melhoria da qualidade da saúde humana e coletiva.

A leitura deste livro nos transporta para um momento doloroso na história da psiquiatria brasileira e nos dá ferramentas para compreender a importância da luta antimanicomial até durante os dias atuais.

Em 2019, início do governo do atual presidente Jair Bolsonaro, o Ministério da Saúde propôs novas políticas de saúde mental e de tratamento para dependentes químicos. Dentro dessa proposta, estaria o retorno da existência de hospitais psiquiátricos e manicômios.

A fim de entender melhor o que isso significa, vamos dar uma passada nos últimos 30 anos.

A luta antimanicomial se iniciou em meados da década de 70 e um grande nome nessa área foi Franco Basaglia, um italiano que acreditava na reinserção cultural e na sociedade das pessoas com transtornos mentais. Ele não acreditava na institucionalização dos pacientes como receita para a cura, muito pelo contrário.

Inclusive, em visita ao Hospital Colônia, Basaglia comparou o que viu com os campos de concentrações nazistas. Tomadas as devidas proporções, realmente ambas não são realidades tão distantes.

As pessoas a serem internadas no Hospital Colônia eram encaminhadas até lá nos “Trens dos Doidos” em vagões abarrotados. Todos seus direitos e garantias individuais eram retirados assim que chegavam. Realizavam trabalhos manuais, eram submetidos à tortura e condições degradantes. Também foram subjugados até perderem a identidade e a consciência de si como indivíduo humano.

Assim como Franco Basaglia, muitos outros profissionais da saúde, entendiam que a exclusão e o tratamento dado a essas pessoas nada tinham a ver com medicina.

Portanto, a luta antimanicomial tem como uma de suas premissas a ideia de que o paciente não vire residente de um hospital. As internações devem ser feitas apenas de maneira pontual e em situações de crise, com tratamentos sempre voltados para a reinserção do sujeito na sociedade e visando o protagonismo e autonomia do paciente, retirando a lógica de cárcere.

A luta antimanicomial enfrentou muitos obstáculos, especialmente durante a ditadura militar. Mas também trouxe bons frutos. Em 2001, uma lei foi sancionada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.

A Lei 10.216, também chamada de lei antimanicomial, começou a ser “incubada” pelo deputado Paulo Delgado em 1989 e teve como objetivo a reforma psiquiátrica e o fechamento progressivo de manicômios e hospícios.

A partir dessa lei, surgiram os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), com objetivo de acolher pessoas com transtornos mentais e dependentes químicos que não estão em tratamento hospitalar. Com o apoio desses centros, os pacientes podem contar com acompanhamento psicológico e médico.

A reforma psiquiátrica nos trouxe a importância da atuação de equipes multiprofissionais para acolher esses pacientes da melhor forma possível, lembrando sempre do objetivo final: a reinserção desse paciente na comunidade, de modo que sejam capazes de criar e manter vínculos com familiares e exercer atividades cotidianas.

O retorno à política de hospitalização compulsória em hospitais psiquiátricos e manicômios acaba sendo uma ameaça. Reforçar o papel dos hospitais psiquiátricos com internação permanente como estratégia de tratamento é um retrocesso e não devemos deixar o silêncio acobertar as indiferenças, como já disse Daniela Arbex em um trecho de seu livro e que foi mencionado no início desse texto.

A leitura desse livro é um aviso quase constante de que a instrumentalização dessas instituições e dos ideais de aprisionamento, exclusão e submissão como tratamento, não devem retornar. E por isso, devemos ficar atentos e participar ativamente de discussões como essas.

Enfim, esse é um livro que conta histórias de dor, desumanidade, luta, resiliência e uma necropolítica presente há muito em nossa história. Por isso enfatizamos que essa é uma leitura ESSENCIAL para profissionais de saúde a fim de repensarmos nosso lugar como agentes permissores e transformadores.

Outras obras que também abordam esse tema e que recomendamos são os filmes “Um Estranho no Ninho” e o “Bicho de Sete Cabeças”.

Onde encontrar

O livro pode ser encontrado para compra na Amazon, Saraiva, Livraria cultura e outras livrarias de sua preferência.

Ficha técnica

Título: “Holocausto brasileiro. Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do país”

Autora: Daniela Arbex

Ano: 2013

Editora: Geração Editorial

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Referências:

Daniela Arbex. Holocausto brasileiro. Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do país. 2013

LEI Nº 10.216 de 6 de abril de 2001.

Mauro Serapioni. Franco Basaglia: biografia de um revolucionário. 2019.

Nota técnica nº 11/2019. Ministério da Saúde. Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas

 

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