As interações medicamentosas ocorrem com certa frequência, sendo papel do médico avaliar a significância clínica dessas interações e como manejá-las.
A interação entre carbapenens (ou carbapenêmicos) e valproato (também chamado de ácido valproico ou VPA) já foi bem reportada na literatura. O valproato é um agente antiepiléptico, e caso o paciente apresente uma comorbidade como uma infecção, pode necessitar de um antibiótico – como os carbapenens.
Nesse caso, os carbapenêmicos diminuem a concentração sérica de VPA de uma maneira rápida, predispondo os pacientes a um risco alto de convulsões. Porém, há relatos do uso intencional de carbapenêmicos em casos de intoxicação por valproato.
Aqui, revise o mecanismo de ação de cada droga, as formas de interação entre elas e como o uso intencional poderia ser utilizado.
Valproato de Sódio
O valproato de sódio ou ácido valpróico (VPA) é um medicamento antiepiléptico, sendo altamente efetivo tanto em adultos quanto em crianças. É uma das drogas de primeira-linha no tratamento da epilepsia, podendo também ser utilizado no tratamento de enxaqueca, transtorno bipolar e esquizofrenia.
O efeito antiepiléptico do VPA ocorre através de um aumento da disponibilidade de GABA no cérebro. Por meio da redução do influxo de sódio, promove uma estabilização da membrana neural no córtex e na medula. Além disso, possui ação discreta nas correntes de cálcio tipo T.
O perfil farmacocinético do medicamento é complexo, possuindo uma absorção variável. Aproximadamente 90% do valproato liga-se a proteínas plasmáticas, principalmente albumina.
A droga é extensamente metabolizada pelo fígado, sendo que menos de 3% é excretada sem alteração pelos rins. Reações adversas do VPA incluem tontura, ganho de peso, fadiga e dor de cabeça, e as reações mais sérias incluem hepatotoxicidade e pancreatite.
Carbapenêmicos
Os carbapenêmicos (como meropeném, doripenem, imipenem, ertapenem e tebipenem) são antibióticos pertencentes à classe dos beta-lactâmicos, que são semelhantes às penicilinas e cefalosporinas.
Seu mecanismo de ação é baseado na inibição da síntese da parede celular, e possuem um amplo espectro antimicrobiano – atuam contra microrganismos gram-positivos, gram-negativos e bactérias anaeróbicas. O uso de carbapenens tem aumentado devido à resistência à cefalosporina no tratamento de Enterobacteriaceae.
A farmacocinética dos diferentes carbapenêmicos é relativamente similar, apresentando algumas diferenças: meropeném e doripenem possuem uma farmacocinética linear. Já o ertapenem tem uma alta capacidade de ligação a proteínas plasmáticas. Entretanto, o efeito dessa característica na farmacocinética é pequeno, sendo possível considerar que sua farmacocinética é quase linear.
Há redução considerável das concentrações séricas de VPA quando em uso de carbapenêmicos
Os carbapenêmicos reduzem a concentração sérica do VPA, entretanto, o mecanismo dessa interação é complexo e ainda não foi totalmente elucidado. Essa redução do valproato ocorre rapidamente, dentro de 24 horas de administração concomitante.
Tal efeito pode levar ao agravamento das convulsões. Alguns estudos clínicos reportaram que 88% dos pacientes em uso combinado podem apresentar concentrações subterapêuticas de valproato; destes, 54% tiveram episódios de convulsão.
Portanto, é recomendado que se evite o uso dessas duas medicações simultaneamente e, caso o uso seja indispensável, a concentração de VPA deve ser monitorada.
Com relação às diferenças entre os tipos de carbapenêmicos, meropenem e ertapenem geram uma redução mais significativa de VPA em comparação ao imipenem.
Além de a redução nos níveis séricos de valproato acontecerem rapidamente, esse efeito também perdura no organismo do paciente: 7 a 14 dias são necessários para que a concentração de valproato retorne aos valores basais, mesmo que haja um aumento na dose fornecida ao paciente.
Qual é o possível mecanismo de interação?
A interação farmacocinética é uma alteração na disponibilidade da droga, causada por um agente coadministrado, que ocorre em alguma das seguintes fases: absorção, distribuição, metabolismo e/ou excreção.
Portanto, qual seria o mecanismo de interação entre carbapenens e ácido valproico?
Alguns estudos sugerem que há uma redução da absorção intestinal do valproato, enquanto outros propõem uma indução de glucuronidação hepática, aumento da excreção renal e aumento da distribuição de VPA para as células vermelhas do sangue.
Um estudo que observou um paciente com prejuízo severo no fígado levantou uma questão interessante: tal paciente não apresentou interação entre valproato e meropeném.
A explicação sugerida é que o metabolismo do VPA é bastante prejudicado devido à perda de células hepáticas funcionais, o que significa que o aumento da glucuronidação do VPA pelo meropenem pode não acontecer.
Também foi observado que a secreção biliar da droga é reduzida em pacientes com cirrose, o que poderia explicar a manutenção da concentração terapêutica de VPA nesse paciente.
Entretanto, é importante observar que o uso de ácido valproico deve ser evitado em pacientes com doença hepática, pois pode contribuir para a hepatotoxicidade. Caso haja a administração, deve-se observar a ocorrência de efeitos adversos e monitorar a concentração sérica dessa droga.
Uso intencional da interação valproato-carbapenens
A interação entre valproato e meropeném foi usada como tratamento intervencional para pacientes em 2 estudos de caso.
Um paciente tratado com valproato para transtorno bipolar foi encontrado não responsivo devido à ingestão de cerca de 10 g de divalproato de sódio de liberação prolongada. A concentração de valproato era de 396,2 mg/ml.
Então, foi administrado meropeném para tratamento de uma possível pneumonia por aspiração, além de aproveitar a sua habilidade de diminuir a concentração de VPA.
A concentração de valproato diminuiu significativamente depois da primeira dose de meropeném e, após 14 horas de terapia, a concentração de VPA estava em 36,5 mg/ml. O paciente recebeu um total de 8 doses de meropeném (500 mg a cada 6 horas), e foi extubado.
Em outro estudo de caso, a toxicidade por VPA foi tratada com 1 dose intravenosa de ertapenem (1 g), carvão ativado e levocarnitina. Ertapenem foi escolhido devido à sua meia-vida longa em comparação aos outros carbapenens.
A concentração de VPA diminuiu cerca de 20% após 1 hora de administração do ertapenem. Após 3 dias, o paciente estava recuperado e as concentrações de VPA estavam 5 mg/ml sem a necessidade de diálise.
Como os dados são limitados a esses dois estudos de caso, os benefícios do uso intencional dessa interação para tratar a toxicidade do VPA devem ser avaliados cuidadosamente em relação aos potenciais riscos, até que surjam mais evidências baseadas em estudos clínicos bem desenhados.
Como gerenciar essa situação?
A utilização de antibióticos alternativos deve ser considerada antes do uso do carbapenem sempre que possível. Por exemplo, tigeciclina ou polimixinas podem ser considerados em caso de microrganismos gram-negativo, e fosfomicina e nitrofurantoína podem ser considerados em casos de infecções no trato urinário.
Caso a terapia com carbapenens seja inevitável, uma opção seria adicionar outro agente antiepiléptico ao valproato durante a terapia com carbapenem. Essa medicação adicionada deve ser continuada por 7 dias após a descontinuação do carbapenem.
O valproato também pode ser trocado pela utilização de outro antiepiléptico. Porém, essa escolha deve ser baseada no tipo de convulsão, efeitos adversos, interações medicamentosas e fatores relacionados ao paciente, como funções hepáticas e renais.
Caso haja um baixo risco de interação medicamentosa, levetiracetam é uma boa alternativa ao VPA. Já a fenitoína e outros antiepilépticos indutores enzimáticos (como fenobarbital e carbamazepina) não são boas alternativas, devido ao seu potencial de interação medicamentosa.
Considerações finais
A combinação de valproato e carbapenens deve ser evitada sempre que possível, com o uso preferencial de outros antibióticos. Quando essa combinação terapêutica for necessária, um monitoramento da concentração plasmática do valproato deve ser realizado, especialmente no início e na parada do tratamento com carbapenem.
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Referências:
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Smolders EJ, Ter Heine R, Natsch S, Kramers K. Meropenem to Treat Valproic Acid Intoxication. Ther Drug Monit. 2022 Jun 1;44(3):359-362. doi: 10.1097/FTD.0000000000000973. PMID: 35170557.
Cunningham D, Clark K, Lord K. Treatment of valproic acid overdose with meropenem in an epileptic patient. Am J Emerg Med. 2022 Mar;53:284.e1-284.e3. doi: 10.1016/j.ajem.2021.09.033. Epub 2021 Sep 22. PMID: 34625331.