Introdução
Não é de hoje que os antropólogos entendem a importância da corrida para a sobrevivência da nossa espécie. Conseguir correr, mesmo sendo bípede e por grandes distâncias, permitiram ao homem importantes habilidades de caça e fuga. Ou seja, correr literalmente salvou a nossa pele.
E o mais interessante é que hoje entendemos que a corrida não impactou apenas na nossa capacidade de obtenção de alimentos. A ciência vem elucidando o quão correr faz bem ao ser humano.
E agora vocês podem estar pensando: “Grande novidade, equipe WeMEDS! Estamos cansados de ouvir sobre as vantagens do exercício físico para a saúde da mente e do corpo!”
Mas esse é o ponto. Sair do sedentarismo é realmente excelente! Mas até esse ano, ainda não havia sido feito um estudo demonstrando com mais detalhes o impacto da corrida no funcionamento cerebral, e graças a um estudo publicado na Scientific Reports (grupo Nature) em novembro deste ano, estamos um passo adiante no entendimento dos benefícios do exercício para a cognição.
SUPER CÉREBRO, ATIVAR!
Em termos anatômicos e fisiológicos, correr é uma atividade complexa. Durante a corrida há a movimentação coordenada dos membros superiores e inferiores.
E se não bastasse ter que se preocupar em impulsionar o corpo para frente com os próprios músculos, o cérebro também tem que coordenar a sincronia dos movimentos e reconhecer os estímulos externos para garantir nosso equilíbrio entre as passadas (isso sem contar nos controles dos sistemas respiratório e cardíaco, mas aí é conversa para outro dia).
Dessa forma, a corrida é capaz de estimular o cérebro de maneiras diferentes quando comparado a outros exercícios físicos, como o ciclismo, por exemplo.
Além de melhorar a performance cardiovascular, fortalecer a musculatura e o sistema ósseo, as passadas que damos enquanto corremos permitem o aumento da circulação periférica e central, o que também resulta em alterações nas condições do cérebro.
Apesar de entendermos que há uma relação entre ativação neuronal e corrida, até o momento não entendíamos muito bem como isso acontecia.
Como informação disponível, sabemos que em modelos animais a força mecânica da movimentação da cabeça durante a corrida é capaz de induzir a internalização dos receptores de serotonina no córtex pré-frontal, resultando em melhor controle cognitivo e das emoções. Mas o que isso significa para o ser humano?
Função executiva e controle inibitório
Bom antes de tudo, achamos importante relembrarmos aqui alguns conceitos de neurofisiologia que vão te ajudar a compreender o que esses pesquisadores japoneses fizeram.
Dois conceitos são fundamentais: função executiva e controle inibitório.
De maneira simplificada, a função executiva exercida pelo sistema nervoso pode ser representada pelo conjunto de habilidades cognitivas que nos permitem tomar decisões e realizar ações voluntárias, auto-organizadas e com objetivo final. Nesse aspecto, tem que haver uma “vontade” para que certa ação seja realizada.
Já o controle inibitório é um tipo de função executiva que permite controlarmos nossos focos de atenção, comportamento, pensamentos e emoções independentemente dos impulsos que o contexto no qual estamos inseridos sugerem.
De maneira lúdica, seria nosso grilo falante interior, nos impedindo de realizar tomadas de decisões baseadas nos nossos impulsos internos e externos. É a parte que nos faz “parar para pensar”.
O estudo
Bom, tendo isso em mente, podemos voltar ao trabalho publicado pelo grupo liderado por Dr. Hideaki Soya.
Eles tiveram como principal objetivo avaliar os diferentes estados de ativação cerebral durante o repouso e após corrida aguda de intensidade moderada, principalmente na ativação pré-frontal (responsável pelas funções executivas e controle do humor) e o impacto disso no humor e na função executiva.
O estudo foi realizado em 26 jovens japoneses, com idade média de 23 anos, sem histórico de cuidados médicos e transtornos neurológicos ou psiquiátricos. Para atingir os objetivos, esse estudo foi dividido em três etapas.
Na primeira, a condição física de cada indivíduo foi avaliada para que fosse possível o desenvolvimento de um protocolo de intensidade de corrida personalizado, que realmente gerasse esforço moderado naquele indivíduo em específico.
O segundo passo, foi determinar o tempo médio que as variáveis fisiológicas não corticais (como fluxo sanguíneo) levavam para atingir os níveis basais após a corrida. Essa avaliação foi importante, para que não houvesse contaminação dos dados com variáveis que não são pertencentes ao objetivo do estudo.
Sendo assim, após essa etapa, viu-se que o tempo médio para normalização das variáveis fisiológicas não corticais dos participantes foi de 15 minutos. Portanto, as avaliações só poderiam ser realizadas 15 minutos após o término do protocolo de corrida.
Por fim, a terceira etapa foi a da corrida em si. Os participantes tiveram que correr em uma esteira por 10 minutos, em um protocolo de corrida personalizado para intensidade moderada.
Durante todo o protocolo experimental, utilizou-se um sistema topográfico ótico multicanal (fNIRS) para avaliar mudanças na hemodinâmica da região pré-frontal dos participantes, a partir das alterações dos sinais de reflexão da hemoglobina oxigenada nesse loci cerebral.
Além de entender quais regiões eram mais ativadas durante o estudo, dois outros parâmetros foram avaliados para a conclusão do trabalho: avaliação do humor e da resposta da função executiva.
A avaliação do humor foi realizada através da escala de humor bidimensional que “fotografa” o estado do paciente naquele instante. O questionário se baseou em 8 palavras que descreviam os estados de excitação e prazer vivenciados pelo paciente naquele instante (energético, vivo, letárgico, relaxado, calmo, irritado e nervoso). E coube ao voluntário classificar, dentro de uma escala de 0 a 5, seus próprios sentimentos. A partir dessa resposta, o estado de humor do participante foi calculado.
A função executiva foi medida através de uma adaptação mais sofisticada do Teste Stroop de Cores e Palavras (do inglês, color-word matching Stroop Task – CWST), mesmo apresentando mais desafios, a proposta seguiu a mesma ideia: desafiar a flexibilidade reativa da função executiva do córtex pré-frontal.
Esse teste é baseado no efeito Stroop, que representa uma interferência no tempo de resposta de uma reação. Muitos de nós já desafiamos nossos amigos a dizer, da maneira mais rápida possível, a cor da tinta com a qual a palavra que designa uma cor foi escrita.
Por exemplo, a palavra “amarelo” escrita em verde. Quando nos perguntam qual a cor da tinta com a qual a palavra foi escrita, nossa tendência é dizer o que está escrito, que nesse caso seria “amarelo”.
Sabendo que o propósito é dizer a cor da TINTA e não do que está escrito, nosso sistema de controle inibitório impede esse impulso de dizer “amarelo” para que possamos responder “verde”. Esse processamento, faz com que o tempo de resposta se torne mais lento.
Muito mais do que uma brincadeira entre crianças, essa é uma estratégia metodológica validada para se avaliar o funcionamento da resposta executiva. Portanto, quanto menor o tempo de resposta, melhor a performance do córtex pré-frontal.
Por isso, o tempo de resposta e o erro de cada voluntário foram calculados. Os participantes puderam testar o sistema 3 vezes antes de realizar a avaliação oficial, com o objetivo de se acostumarem com o método.
Tanto a avaliação de humor, quanto o teste CWST e o registro por fNIRS foram realizados durante o período de repouso do participante e após 15 minutos do protocolo de corrida aguda moderada.
Após a análise dos resultados, o grupo de pesquisadores observaram que houve melhora no estado de humor dos participantes após a corrida. E mais do que isso, também observaram a melhora da função executiva obtida através da redução do tempo de resposta ao teste CWST.
Em outras palavras, o que podemos entender até aqui é: correr por 10 minutos em intensidade moderada é capaz de melhorar o seu humor e disposição, além de potencialmente melhorar a sua capacidade de tomar decisões. E convenhamos, em tempos em que tudo é medido por produtividade e estratégia, essa é uma skill fundamental.
E por fim, a melhora no humor, disposição e resposta ao teste CWST coincidiram com a ativação de sub-regiões localizadas bilateralmente no córtex pré-frontal, demonstrando que a corrida aguda moderada é capaz de ativar o córtex pré-frontal o que provavelmente levou aos resultados de comportamento e humor observados.
E cá entre nós, será que é por isso que o Papaléguas sempre sabia como escapar das armadilhas do Coiote? Fica aí o questionamento.
Brincadeiras à parte, que o exercício físico melhora nossa saúde já estamos cansados de saber. Mas saber as vantagens que 10 minutinhos de corrida podem trazer não só para o metabolismo, mas também para nossa capacidade de tomada de decisões e humor, deixa tudo ainda mais interessante.
Se quiser saber mais sobre esse artigo, acesse esse link.
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Referências:
A 10-minute run can boost brain processing. MedicalXpress. 2021.