A Hiperplasia Adrenal Congênita é uma doença de origem genética na qual há deficiência enzimática na via esteroidogênica, fazendo com que haja carência na formação de cortisol (e aldosterona na maioria das vezes). Como consequência há perda do feedback negativo sobre a hipófise, aumentando a secreção do ACTH e hiperestimulando a suprarrenal, que acaba produzindo excessivamente androgênios.
Atualmente, a doença faz parte do teste do pezinho, compondo as doenças capazes de diagnóstico já ao nascimento através da triagem neonatal.
Entenda mais sobre essa doença, principais sinais e sintomas e direcionamentos de tratamento.
Hiperplasia Adrenal Congênita: 95% dos casos por deficiência de 21OH
Apesar de tratarmos a Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC) como uma entidade única, na verdade ela representa uma série de distúrbios autossômicos recessivos, cuja deficiência em diferentes enzimas da via esterodoigênica levam a múltiplos desequilíbrios hormonais.
A mais comum, geralmente lembrada como representante de todos esses distúrbios, é a HAC associada a deficiência de 21-hidroxilase (21OH), cuja mutação no gene CYP21A2 altera enzimas necessárias para a síntese de cortisol e aldosterona.
A HAC por deficiência de 21OH soma cerca de 95% dos casos hiperplasia adrenal. Nos outros 5%, encontramos distúrbios menos comuns como as deficiências de 17-alfa-hidroxilase ou 11-beta-hidroxilase, por exemplo.
Os sintomas esperados variam de acordo com a deficiência predominante/presente:
Se mineralocorticoide, esperamos hipotensão, hiponatremia, hipercalemia e desidratação; se glicocorticoide, esperamos hipoglicemia, fadiga, perda de peso, e náusea/vômito;
Se por hiperandrogenismo, esperamos genitália externa atípica (em indivíduos 46XX), psudopuberdade precoce e redução da velocidade de crescimento, em crianças, e distúrbios menstruais, hirsutismo, acne e infertilidade, em adolescentes e adultos.
Forma clássica vs. não clássica
A depender do espectro fenotípico, a HAC pela deficiência de 21OH pode se apresentar na forma clássica ou não clássica. Enquanto a clássica, felizmente, é menos comum (incidência entre 1/10.000 e 1/20.000 nascimentos), a forma não clássica é mais branda, visto não cursar com deficiência glicocorticoide, e afeta entre 1/200 e 1/2000 nascimentos.
A apresentação clínica dos diferentes fenótipos é variada, a depender da porcentagem de enzima acometida. A forma clássica pode, ainda, ser subclassificada nas formas perdedora de sal e virilizante simples, que diferem importantemente em gravidade.
Enquanto na forma perdedora de sal a via mineralocorticoide está afetada de forma importante – de forma que essas crianças apresentam risco de crise adrenal significativa, sobretudo quando não tratadas – na forma virilizante simples o risco de perda de sal acontece sobretudo em situações de estresse clínico físico, como febre, trauma ou cirurgias, por exemplo.
A forma não clássica, por sua vez, tem seu espectro de sintomas relacionado com a idade ao diagnóstico. Nem sempre os sintomas são evidentes ao nascimento, mas se desenvolvem com o tempo – motivo pelo qual essa forma de HAC também é chamada de “forma de início tardio”. Variantes patogênicas associadas à forma não clássica podem não prejudicar a síntese de cortisol de maneira clinicamente relevante, mas resultar numa superprodução variável de androgênio adrenal.
Por isso, em crianças menores de 10 anos a adrenarca precoce é o sinal mais comum, enquanto em adolescentes e adultas do sexo feminino pode ocorrer acne, hirsutismo, clitoromegalia, menstruação irregular ou infertilidade.
Visto a faixa etária de apresentação, os sintomas podem ser indistinguíveis daqueles associados a adrenarca precoce ou à síndrome dos ovários policísticos (SOP)! Não por acaso, muitos diagnósticos de SOP são dados erroneamente.
A síndrome dos ovários policísticos (condição diferente de ovários policísticos, apenas), é um diagnóstico de exclusão, e poucos se lembram de excluir HAC antes de fechar o diagnóstico. Ainda, muitas vezes SOP é diagnosticada de forma indevida na adolescência, quando os ciclos menstruais são naturalmente irregulares (sobretudo no primeiro ano após a menarca).
Em indivíduos do sexo masculino, por outro lado, os sintomas de excesso androgênico adrenal geralmente causam sintomas que não requerem atenção médica, e por isso a pesquisa e diagnóstico ocorre com muito menor frequência.
Marcador laboratorial: 17OHP
Falando em diagnóstico, não podemos nos esquecer de solicitar o principal marcador laboratorial quando pensamos em HAC: a 17-alfa-hidroxiprogesterona (17OHP). Essa enzima está elevada na HAC, e o motivo dela ser o marcador, e não a 21OH, é porque trata-se de um precursor esteroide direto a montante que se acumula antes do bloqueio enzimático.
Quando observamos a via esterodoigênica, fica mais fácil entender que, se há determinada enzima bloqueada, outras vias serão “sobrecarregadas” – sendo esse o “alvo” para determinar o marcador diagnóstico.
Outro cuidado muitas vezes passado despercebido é que as amostras de 17OHP devem ser coletadas pela manhã, visando seguir o ritmo diurno da secreção de hormônio adrenocorticotrófico e, nas mulheres, a coleta deve acontecer durante a fase folicular, visto que no período periovulatório e na fase lútea as concentrações de 17OH matinais (basais) tendem a ser ligeiramente mais altas.
Uma vez medida, concentrações superiores a 1000 ng/dL são diagnósticas de HAC, enquanto aquelas < 200 ng/dL afastam a condição. Valores intermediários passam por um teste de estímulo com ACTH sintético (cortrosina), que também tem o número “1000” como valor de corte: acima de 1000 ng/dL após o teste de estímulo, o diagnóstico é confirmado; se < 1000, é afastado.
Além de diagnóstico, as concentrações de 17OHP também podem ser usadas para discriminar entre as diferentes formas de gravidade/apresentação da HAC!
Indivíduos com a forma clássica geralmente têm concentrações de 17OHP > 10.000 ng/dL, enquanto os com a forma não clássica apresentam valores entre 1000 e 10.000 ng/dL. Porém, uma vez feito o diagnóstico, a 17OHP não serve como marcador de controle da doença!
Isso acontece porque, se levarmos a 17OHP em conta para seguimento, há uma tendência de utilizar supradoses de corticoide, visto que doses mais elevadas tendem a ser necessárias para normalizar o marcador. Ao invés dele, adotamos os níveis de androstenediona, hormônio parcialmente específico para adrenal, e com meia-vida aumentada em comparação a 17OHP (além de não favorecer a questão do abuso de corticoide).
Como tratar?
Por fim, o tratamento da HAC será baseado sobretudo em dois pilares: a reposição de glicocorticoides e mineralocorticoides, nas formas clássicas, e o controle androgênico, em todas as formas, quando houver apresentação clínica.
Com relação aos corticoides, na infância a escolha é a hidrocortisona, visto ser, em comparação com os demais, aquela que melhor mimetiza os efeitos negativos do tratamento sobre o crescimento (são indicadas quando há sinais de virilização, crescimento acelerado e maturação óssea avançada).
Uma vez atingida a altura final, quando necessário, a hidrocortisona pode ser substituída por prednisona, prednisolona ou dexametasona (entre outros), que cursam com melhores posologias (e assim, culminam em melhor aderência). Nas formas com deficiência mineralocorticoide – como a perdedora de sal – a escolha recai sobre a fludrocortisona.
Por fim, dos tratamentos para controle androgênico, temos a indicação de anticoncepcionais orais contendo progestagêneos anti-androgênicos (escolha) e, em caso de falha, espironolactona ou acetato de ciproterona.
Bastante coisa, digno de uma condição complexa! Mas a mensagem que fica é: a HAC é relativamente rara, mas existe! Sem suspeita e pesquisa clínica, não faremos diagnóstico. É necessário um novo olhar sobre diagnósticos supostamente firmados de SOP, sobretudo levantando sempre a hipótese da forma tardia.
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Referências:
Auer MK, Nordenström A, Lajic S, Reisch N. Congenital adrenal hyperplasia. Lancet. 2023 Jan 21;401(10372):227-244. doi: 10.1016/S0140-6736(22)01330-7. Epub 2022 Dec 8. PMID: 36502822.