A técnica para produzir gametas em laboratório é revolucionária, e pode ser uma nova estratégia para casais com infertilidade. No entanto, uma das principais dificuldades no cultivo de gametas em laboratório é a reprogramação epigenética. Num artigo recente, publicado na revista Nature, pesquisadores tentaram driblar esse desafio, criando uma estratégia para gametogênese in vitro.
A epigenética é um importante obstáculo na gametogênese humana in vitro
Um dos maiores desafios para cultivar gametas em laboratório é a essa epigenética que é presente in vivo. A epigenética consiste em “marcas” presentes no DNA, capazes de ativar ou silenciar um gene, portanto, são de extrema importância para o desenvolvimento dos gametas.
Vamos relembrar:
A partir do 12º dia embrionário, enquanto o embrião se desenvolve, inicia-se o processo de reprogramação epigenética através de dois mecanismos: desmetilação do DNA e remodelação da modificação de histonas.
Por volta de 7 a 8 semanas após a fertilização, as células completam o processo de reprogramação e se diferenciam em pró-espermatozoides mitóticos ou oogônias, precursores para a diferenciação de espermatogônias ou oócitos, respectivamente.
A reprogramação epigenética redefine as memórias epigenéticas parentais e diferencia as células germinativas primordiais (CGPs) em pró-espermatozoides ou oogônias mitóticas. Este processo garante o desenvolvimento sexualmente dimórfico das células germinativas.
A reconstituição in vitro da reprogramação epigenética em humanos continua sendo um desafio fundamental. No artigo publicado em maio desse ano na revista Nature, os pesquisadores estabeleceram uma estratégia para induzir a reprogramação epigenética e a diferenciação de células semelhantes a CGPs humanas (hPGCLCs) derivadas de células-tronco pluripotentes em pró-espermatozoides ou oogônias mitóticas.
Com esses conhecimentos, avançamos em direção ao cultivo de espermatozoides e óvulos em laboratório.
Os sistemas atuais de gametogênese in vitro não são ideais
A gametogênese in vitro (IVG) a partir de células-tronco pluripotentes (PS) fornece uma estrutura para esclarecer o mecanismo de desenvolvimento das células germinativas.
Assim, alguns estudos já mostraram que, quando essas células-tronco são induzidas em células semelhantes às germinativas primordiais e colocadas em uma cultura de agregação com células somáticas testiculares ou ovarianas embrionárias de camundongo (testículos reconstituídos xenogênicos (xrTestes) ou ovários (xrOvários), respectivamente), sofrem reprogramação epigenética e se diferenciam em células semelhantes a pró-espermatozóides ou oogônias.
No entanto, os sistemas xrTestis e xrOvary são de baixa eficiência e têm capacidade limitada para escalonamento e controle experimental. Embora as células possam ser co-cultivadas com organoides de intestino posterior humano para diferenciação, isso também atinge apenas uma diferenciação limitada.
Assim, para explorar o mecanismo de diferenciação de células e acelerar a IVG humana, é necessária uma metodologia mais robusta. Nesse caso, os autores se dedicaram a estabelecer um sistema para a diferenciação de hPGCLCs impulsionada por moléculas sinalizadoras.
Reconstituição da reprogramação epigenética em óvulos e espermatozoides
Vamos explorar um pouco mais da biologia molecular. No trabalho, foram analisados os seguintes sinais:
– WNT – molécula de via de sinalização que regula diversos eventos na embriogênese;
– NODAL – molécula de sinalização pertencente à família de proteínas do fator de crescimento transformador beta (TGF-β), envolvida na formação do eixo ântero-posterior na embriogênese; e
BMP – proteína morfogenética óssea, também envolvida com diferenciação na embriogênese.
Os autores observaram que a sinalização de proteínas morfogenéticas ósseas (BMP) é um fator chave nesses processos. Os processos envolvidos na diferenciação celular impulsionada por essa molécula são a atenuação da via MAPK (ERK) e a alteração das atividades de metiltransferase de DNA, tanto de novo quanto de manutenção, que provavelmente promovem a desmetilação passiva de DNA acoplada à replicação.
Os pesquisadores também concluíram que células deficientes em TET1, uma desmetilase ativa de DNA abundante em células germinativas humanas, diferenciam-se em células extraembrionárias, incluindo o âmnio. Essas células não conseguem ativar totalmente genes vitais para a espermatogênese e a oogênese, e seus promotores permanecem metilados (silenciados).
Mais um passo em direção à gametogênese in vitro
O estudo fornece uma estrutura para a reprogramação epigenética em humanos e um avanço importante na biologia humana. Através da geração de abundantes pró-espermatogônias mitóticas e células semelhantes a oogônias, esses resultados também representam um marco para a pesquisa de gametogênese humana in vitro e seu potencial de tradução para a medicina reprodutiva.
Além de uma esperança para casais com infertilidade, o cultivo de gametas possibilita a edição da sequência de DNA em laboratório, podendo alterar genes causadores de doenças. Obviamente, além das questões técnicas que devem ser observadas com esses procedimentos, há muitos questionamentos sociais e éticos.
Mitinori Saitou, biólogo de células-tronco da Universidade de Quioto, no Japão, e co-autor do artigo, afirma que ainda há muitos passos a serem conquistados e que a reprogramação epigenética realizada em seu laboratório precisa ser aperfeiçoada.
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Referências:
MURASE, Y. et al. In vitro reconstitution of epigenetic reprogramming in the human germ line. Nature, | Vol 631 | 4 July 2024.
NEWS MED. Esperma e óvulos cultivados em laboratório: redefinição “epigenética” nas células humanas abre o caminho. 2024. Disponível em: https://www.news.med.br/p/medical-journal/1470192/esperma-e-ovulos-cultivados-em-laboratorio-redefinicao-epigenetica-nas-celulas-humanas-abre-o-caminho.htm.